22 fevereiro 2010

Capítulo 6

Levanto de súbito. O coração acelerado. A cabeça pulsa. Os lábios formigam. O sol traz calor e luz ao quarto. Dez horas. Já é tarde demais. Tudo isso se passa em meio segundo. Então vejo a mulher dormindo ao lado, pacífica e lindamente. Repentinamente me situo no tempo. Não há pressa. É domingo.

Domingo é um dia ímpar. O tempo deixa de ser a medida da vida. As horas transcorrem anônima e silenciosamente. O relógio é apenas um enfeite na parede. Levanto tranquilo e sigo descalço. Na cozinha, um gole d’água. Um vizinho apara a grama. Outro lava o carro. Crianças correm na calçada, a pé ou de bicicleta. Outro gole, copo na pia. Nada de louça hoje.

A esposa desperta com um beijo estalado. Feliz e sossegada, sabia que dia era. Havia dormido um sono reparador, pesado e sem sonhos. Eu não. Tenho tido sonhos turbulentos e confusos. Com o trabalho. Não o meu, mas outros. É sempre igual, sendo diferente. Um dia se passa em sonho. Cada dia uma profissão diferente. Não sou feliz no trabalho. Nem nos sonhos, acho. É estranho.

Vou ler um pouco. O livro marca a mesma página há semanas. Sinto culpa. Sim, eu adoro ler. Sim, o livro é ótimo. Sim, a desculpa é o tempo. Não, não tenho feito nada para mudar. Reclamo pra mim mesmo sobre a vida. Sobre como o tempo é tão escasso. Pelo menos para fazer o que realmente queremos. Mas sair desse ciclo é muito difícil. Persisto tentando, em vão. Até agora.

O almoço não tem hora. E vamos aonde temos vontade. Não tem que ficar no caminho de lugar nenhum. Nem perto. Não precisa ser barato. Nem rápido. E isso torna a refeição muito mais especial. Não é comer, mas apreciar. Não é nutrir, mas divertir-se. Não é envelhecer, mas viver. Todos os dias deveriam ser como domingo. Pelo menos conceitualmente. Será possível? Não sei.

À mesa, o assunto são meus sonhos. Ela sabe de minha insatisfação crônica. E tenta ajudar. Fala mal do seu trabalho. Conta os problemas que surgem. Mas sei que no geral ela gosta. É feliz. E não diminui minha tristeza saber que todos os trabalhos têm desvantagens. Não me consola que todas as pessoas tenham problemas. É mais intenso comigo. O meu trabalho não tem problemas. O problema sou eu.

Depois, vamos a um passeio no shopping. Relaxo, mas não consigo deixar de pensar. Penso muito todo o tempo. A maior parte dele sobre trabalho. Afinal, o que é trabalhar? Ocupar-se de algo útil para a sociedade? Labutar em troca de sustento? Buscar satisfação extra-familiar? Utilizar o tempo? Maximizar os talentos e dons? Ambicionar? O trabalho é somente o que se faz entre os momentos de felicidade. Pelo menos para mim agora. Acredito piamente que não é só. Eu quero estar errado.

Imagino a carreira como um trem sobre o trilho. Uma vez num sentido, é difícil desviar-se. Sair do trilho é abandonar o progresso até o momento. Os vários anos de aprendizado. A segurança da maestria. Os benefícios financeiros. A expectativa da família. O reconhecimento social. Enfim, enfrentar a força da inércia que nos leva a continuar em algo já iniciado. E o ser humano é assim por natureza. Uma onda destrói o castelo de areia na praia. A criança recomeça a construção sobre as ruínas. Sempre. Nem pensa em começar de outro lugar. É instintivo.

É fácil mudar de vida quando se sofre uma grande tragédia. Ou quando se perde tudo. Sem desmerecer o esforço dos que o fazem, mas não há opção. Todos apóiam. Tudo conspira a favor. Depois de um rompimento abrupto com a normalidade, a reviravolta é esperada.

O oposto ocorre quando a virada vem para quebrar o equilíbrio. Especialmente se tudo vai bem. O agente da mudança é um agressor da paz. Se algo der errado é sua a culpa. Não deveria ter mexido onde estava tudo funcionando. Nem arriscado o que já havia construído. O julgamento da raça humana é impiedoso. Principalmente aquele que vem de dentro.

Eu sou bom no que faço. Domino meu trabalho. Não sou o melhor do mundo. Nem da cidade. Mas quem me vê em ação se surpreenderia com minha insatisfação. A competência em algo não é reflexo da felicidade em realizá-lo. Eu desejo a mudança. Algo que me faça querer ser o melhor. Não em comparação com outros. Mas comigo.

O jantar hoje é pizza romântica. Saboreada com as mãos. Mais uma frugal alegria. Desses momentos tiro a força para viver. É nas pequenas coisas que mora a felicidade. Avancei algumas páginas no livro. Satisfeito, penso no dia. Nada como uma grande dose de família para equilibrar a vida. Vou me deitar com esperança.

Afasto todos os pensamentos realistas de que amanhã retornarei à rotina desgastante. Tento mentalizar positivamente, apesar da frustração. Estou chegando mais perto. Sei que em algum momento do futuro está a minha virada. Um sonho que estou construindo aos poucos, e acordado. Esqueço o ontem, e durmo o hoje. Para sonhar o amanhã.