10 março 2010

Capítulo 7

A consciência se acende. Como turbinas de uma nave espacial, rugindo e tremendo sem sair do lugar. Vagarosamente sinto o corpo, levanto e constato as horas. Onze. Aos poucos me acostumo a acordar esse horário, e a fazer do almoço o desjejum. Já vestido, adentro a cozinha para iniciar um grande dia.

Lavo uma faca e um copo, vestígios do café-da-manhã da esposa. Logo ela vai chegar para o almoço. Automaticamente, pico cebolas e alhos. Lágrimas frias ardem os olhos. O cheiro prazeroso vai se formando nas panelas enquanto faço a terapia culinária diária. Cozinhar em casa havia sido uma necessidade. Depois da grande mudança precisávamos encaixar o padrão de vida na atual faixa de renda. Já faz alguns meses, e por isso já tenho certa desenvoltura de avental.

Meio-dia e dez. Almoçamos juntos enquanto conversamos com animação. Se estou ansioso? Claro. Hoje é o primeiro dia de uma nova era. Meses de estudo e dedicação, trocas de experiências e noites em claro. Pra culminar no hoje em diante. Contemplo minha obra-prima de cinquenta centímetros cúbicos. Daqui a pouco vou à escola para a primeira aula.

Uma e meia. Estou chegando para o primeiro dia do novo emprego. Cumprimento efusivamente um velho professor. Amigos nos ajudam a encontrar o caminho. Este me abriu as portas da oportunidade. Meses atrás me apresentou ao diretor da escola. Disse que eu poderia substituí-lo em algumas aulas de laboratório. O diretor ficou tão satisfeito com meu domínio da astronomia que criou aulas extracurriculares sobre o tema para todo o ensino fundamental.

Há quase dois anos que me dedico aos estudos de astronomia. Iniciei em paralelo ao antigo emprego. O que era uma diversão curiosa tornou-se alvo de estudo sério. Assisti a diversos cursos em todo o país e frequentei congressos e workshops. E quando tive certeza, abandonei a segurança. Para abraçar a paixão. Só não fiz o curso superior ou pós-graduação. Não tenho maiores pretensões por enquanto. Filiei-me a um clube de observadores. Sou um amador profissional. Nesse período aprendi a cozinhar e cuidar da casa. Gastei cada centavo economizado nos últimos cinco anos. Adiamos a compra do segundo carro e a mudança para uma casa melhor. Em prol da minha realização. Que culmina hoje com o primeiro sucesso.

Duas horas. Os alunos vão chegando. Alguns curiosos. Mas a maioria receosa e tímida. Olham para mim enquanto acomodo minha maquete sobre a mesa. Era uma base de madeira fina pintada de preto, com hastes metálicas que sustentavam esferas pintadas cuidadosamente à mão. Uma representação da Via Láctea. Oito meses de trabalho concentrados em cinquenta centímetros cúbicos. É chegada a hora de começar.

Crianças são incríveis. Tem um poder de absorção de conhecimento quase infinito. São atraídas pelo interesse genuíno. Perguntam e duvidam tão sinceramente quanto respondem e acreditam. E por isso a aula transcorre muito bem. Nervosismo à parte, despertar curiosidade nas crianças é fácil tendo o espaço sideral como assunto. Começo pelo sistema solar com a maquete para prender sua atenção. E termino falando do que eles mais gostam. Viagens espaciais do passado.

Deixar o emprego foi difícil. Não é simples abandonar o piso seguro e dar um salto no desconhecido. Um frio na barriga é o que se sente, por semanas, ou meses. E retornar à rotina pregressa seria como admitir para si o fracasso. Arrasador. Até hoje tenho arrepios de pensar no risco que assumi. O segredo é não olhar pra baixo, nem pra trás. Pelo menos até sentir a terra firme de novo. E a felicidade.

Seis horas. Inicio o preparo do jantar. Apenas um complemento para as sobras do almoço. Minha esposa chega animada para saber como fui. Diz que sabia que iria dar tudo certo. O apoio nessas horas de mudança tem que vir de dentro. Da minha cabeça. E da minha família. Apesar do ceticismo de todo o resto da família e quase todos os amigos, iria dar tudo certo. Eu e ela faríamos acontecer. E estava começando agora.

Oito e meia. Saio de carro para o clube. É uma chácara fora da cidade. Hoje o seminário é sobre Plutão. O presidente vai discorrer sobre dados e imagens para os outros cinco membros. Vamos discutir à exaustão tudo o que foi documentado e é conhecimento aberto até o momento. Inclusive a recente mudança de classificação do antigo planeta e os argumentos científicos. Por último vamos votar minha última idéia.

Sugeri fomentar o interesse de adultos pelo assunto por meio de cursos. Estava tudo idealizado em minha cabeça. Os módulos e o planejamento da observação noturna após as aulas, conforme a época do ano. Cada membro daria um ou mais módulos, segundo a vontade e o conhecimento. Parte do faturamento iria para o clube. E parte para o sustento dos nossos lares. A idéia é aprovada. Se vai dar certo? Não sei. Mas vou trabalhar feliz no projeto.

Onze horas. É chegado o momento solene da observação. Apagamos as luzes e cada um pega seu telescópio. Minutos ou horas de puro deleite. E silêncio cerimonioso.

Uma hora. Retorno ao lar após o segundo período da minha nova atividade. A noite sempre foi minha companheira, de insônia ou de trabalho imposto. Mas agora o prazer permeia meus esforços. E eu estou em um caminho de plenitude. O dinheiro faz uma grande falta. Mas é um preço ínfimo pela liberdade. Segurança? Abandonei-a voluntariamente.

A esposa dorme tranquila enquanto eu me deito. O cansaço bate e o sono vem fácil. Um sono de vitória.