15 março 2010

Capítulo 8

O calor me desperta. São onze horas. O quarto está escuro por mérito das novas cortinas blecaute. A mente não quer mais dormir. Os sonhos continuam hiperativos. Estou pronto para mais um dia. Um novo capítulo na novela da vida real.

As minhas manhãs sempre foram preguiçosas. Sou um ser noturno. Agora com meu novo trabalho posso ajustar meu dia à minha vontade. Mais que antes, pelo menos. É bom sentir que aproveito meu melhor momento para a labuta. Não fico forçando meu organismo ao famigerado horário comercial. A sociedade microeconômica move-se em bloco. Tudo tem que funcionar ao mesmo tempo. Artificialmente.

Revejo rapidamente a agenda. Faço uma ligação para confirmar o compromisso vespertino. Meu trabalho hoje é bastante satisfatório. Nada de competição. Ninguém buscando a vantagem. O lucro não é mais a medida das coisas. Entrego meu esforço em troca de muita satisfação. E pouco dinheiro. Não se pode ganhar em tudo. Pelo menos num primeiro momento. Reparo na anotação da viagem a Paris, riscada dessa data por contenção de despesas. Ao contrário da crença popular, mudanças para melhor são pontuadas de desvantagens. E por isso, nada fáceis. Mas Paris pode esperar.

Uma hora. Almoço algo semipronto. Salve o inventor do micro-ondas. Meu par conjugal não retorna para o almoço. Ela trabalha muito longe. Num emprego regular, em horário comercial. Não que seja uma desvantagem. Cada pessoa deve buscar o que melhor se encaixe na sua vontade. E eu estou quebrando os paradigmas e violando as regras. Sou um algoz das convenções sociais.

Duas horas. Chego à sede da emissora. Costumo ser simpático com todos, desde o porteiro, seguranças, assistentes-de-tudo, até o pessoal da limpeza. Todos aqui, sem exceção têm potencial. Podem no futuro chegar ao sucesso. Ou simplesmente aposentar-se na mesma função. Nunca antes pensei que as estrelas de tevê pudessem entrar aqui, por uma porta giratória comum. Acenar para as pessoas comuns com empregos comuns antes de estrelar programas de sucesso. O convívio com as celebridades certamente entra no pacote de benefícios oferecidos nessa empresa. E todos trabalham felizes.

Duas e dez. Antes de perder o sinal nas salas isoladas, ligo para minha esposa. Gosto de saber como ela está. Entre outras coisas, combinamos de ir ao mercado amanhã. Ela então se queixa do orçamento, que anda curto. Abrimos mão de alguns itens menos essenciais para cabermos em nosso novo salário. Concordamos afinal, Paris deve esperar.

Vou até o balcão, anunciar minha chegada nos estúdios. Assino a entrada e dirijo-me às estantes de arquivos. As secretárias me conhecem. Há meses que frequento o local diariamente. Assisto a alguns programas e mergulho a fundo na papelada que os acompanham. São basicamente pesquisas e relatórios dos quais extraio informações para minha tese. A audiência de cada capítulo, a propaganda nos intervalos e as inserções comerciais. Nas novelas, delineio cada linha que a trama desenha capítulo por capítulo. E como cada um dos núcleos de personagens interage. Tudo entra devidamente classificado dentro do meu netbook.

Há alguns anos decidi sair do meu emprego monótono e encontrar algo que me realizasse. Sempre gostei muito de assistir à televisão. Por isso busquei uma carreira que pudesse associar meu prazer ao desenvolvimento de algo útil e interessante. Certamente não tenho desinibição para estar do lado de lá da tela. Até que, certo dia, conversando com amigos numa mesa de baralho, o assunto surgiu.

O impacto que esse aparelho tem na vida das pessoas é enorme. Por meio da tevê, recebemos em casa cultura empacotada. E a sociedade acaba se moldando por ela. O fenômeno é muito mais gritante nas novelas. As gírias, as roupas, os conflitos pessoais e familiares, os hábitos, as intrigas e até as doenças dos personagens são assunto de rodas de conversa por todo o país. Isso foi percebido pelas empresas, de modo que, não por mera coincidência, um personagem dirige o carro X, usa o creme Y e toma o refrigerante Z. O posicionamento no mercado dos produtos pode ser feito associando sua imagem à personalidade e às qualidades de tal personagem. Todos querem copiar algo da vida maravilhosa da tevê. Nem que seja o xampu que o galã usa.

O diploma de Sociologia como segunda faculdade foi consequência do desejo. Desejo de ir a fundo nessa relação da tevê com as pessoas. Como ela entra nos lares e influencia a vida de todos, direta ou indiretamente. Qual é a nossa reação a este fato e como será o futuro, com a internet e a era digital amplificando toda a interação.

Seis horas. Estou de saída. Penso que sempre é possível trabalhar com o que se gosta. Há anos que possuo essa convicção. Mas admitir a infelicidade e aplicar a dificílima solução levou tempo. Sei de colegas que reclamam insatisfeitos com suas carreiras. Porém, não assumem o risco de mudar. Entre a incerteza da felicidade e a certeza da infelicidade, talvez escolham a última. As pessoas pensam na mudança de trabalho como uma decisão de vida ou morte. É errado. A morte não é uma opção, é um fato futuro garantido. As opções se dão em vida. Para aqueles que têm coragem.

Oito horas. Após o jantar a dois, vamos à sessão diária de tevê. Sempre anotando tudo, acumulo informações no netbook. Minha esposa fica feliz em me ver trabalhando satisfeito. O lazer e o dever se tornam indistintos, e eu frequentemente fico até tarde da noite trabalhando. Ou curtindo, como seja.

A certa altura da madrugada desligo o aparelho e vou me deitar. Um copo de água me acompanha até a beira do leito. A esposa descansa silenciosa. E eu me deito para entrar no sonho. Paris, aí vou eu.