Ouço o alarme do relógio. São sete horas. Desligo meu companheiro digital. É um velho japonês com calculadora. Confiável e muito trabalhador. Aspiro o ar fresco da manhã. Lá fora, o burburinho reflete o trânsito de veículos e pessoas. Minha mulher está se vestindo há algum tempo. Vou começar agora pra terminarmos juntos.
O café da manhã é na padaria da esquina. Pão com manteiga na chapa e café com leite. Penduramos a conta. Hoje ela quis dirigir. É estranho ser o passageiro. Tenho o costume de ser controlador. De tudo. Até inibo movimentos reflexos enquanto ela manobra. Mesmo sendo boa motorista. Fico no caminho enquanto ela vai trabalhar de carro.
O campus é um lugar muito agradável e arborizado. E mistura opostos estranhamente. A parte velha tem uma bela arquitetura moderna. Placas de concreto angulado, muito vidro e iluminação natural abundante. E a parte nova ironicamente tem construções que lembram os conjuntos habitacionais antigos. Parecem caixotes de tijolos com janelas pequenas. Certamente feitas por engenheiros visando economia. De material e de beleza.
Oito horas. Abro a porta do laboratório. Lá dentro vejo a funcionária da limpeza e estagiários. As engrenagens do sistema de pesquisa. Cumprimento-os brevemente e vou para o meu escaninho. Organizo a bagunça de papéis e livros e leio alguns. Retomo o fio da meada e esboço o experimento que venho imaginando há dias. Alguma inspiração na última noite pode ser a chave. E pode dar certo dessa vez. Olho de relance os formulários para aquela bolsa de incentivo para pós-graduandos. Que pode me levar à China. Por um instante, devaneio.
Às nove horas a chefe chega. Ela é a pesquisadora sênior do laboratório. Uma mente brilhante dedicada ao "estado da arte" em Neurociências. Que o digam suas filhas adolescentes, que lutam pela atenção da mãe divorciada. Todos lutamos. É injusto que tanto conhecimento esteja concentrado em uma só pessoa. Principalmente para ela. E eu, como doutorando em fase final, sou o vencedor na luta por atenção. Tristemente.
Nove e meia. Traçado o plano, mãos à obra. Chamo os estagiários para ensinar-lhes seu novo trabalho. A maioria vem excitada. Tudo é legal antes de se tornar repetitivo. Poupo-lhes o sofrimento antecipado e oculto este fato. Na incubadora, pego um ovo de galinha fecundado há algumas semanas. Dentro de uma câmara de fluxo laminar, abro cuidadosamente o ovo. Retiro o globo ocular preto, e deste, a retina fina e esbranquiçada. Após uma série de processos, adicionamos as células obtidas a um líquido cor-de-rosa, o meio de cultura. Abro a estufa para colocar as células que acabo de preparar. E mostro no microscópio invertido as que preparei ontem. É como um programa de culinária pela tevê. Pulamos a etapa em que o bolo vai ao forno.
Trabalhar com pesquisa é uma tarefa hercúlea e ingrata. Semanas a meses de esforços ininterruptos para adicionar um grão de areia à pirâmide do conhecimento. Os inocentes pensam que seu esforço é uma peça essencial para um grande avanço tecnológico. A realidade é que para nós, cientistas, nunca há grandes avanços. Tudo é moroso e a recompensa inexiste. Alguém com influência e bons contatos na imprensa vai levar toda a fama. E o seu árduo trabalho vai ser apenas uma nota de referência, uma curta linha nos créditos finais de um filme de cinema. E com a mesma popularidade. Ou seja, ninguém vê.
Onze horas. Os estagiários se divertem com os ovos. Ainda estragando boa parte deles. E eu mergulho nos artigos científicos. A parte mais trabalhosa da tese de doutorado é a leitura das referências bibliográficas. Leio tudo que possa ter alguma correlação com qualquer uma das etapas do meu experimento. E isso é bastante coisa. Certamente li mais nos últimos quatro anos que em todos os outros da minha vida. E sobre apenas um assunto chave. A guerra? A crise econômica? A morte da bezerra? Não estou sabendo. A única exceção do sub-tópico do sub-capítulo? Ah sim, na página mil duzentos e quarenta e sete do volume três, à esquerda, segundo parágrafo.
Meio dia. O restaurante da Universidade está lotado, como sempre. Resta um prato feito na cantina mais próxima. E voltar correndo pro laboratório.
Imediatamente inicio o experimento. O objetivo é estudar as células do sistema nervoso central. Na retina nós temos estas células sem precisar abrir o crânio do animal. Minha ambição maior é trabalhar com células-tronco embrionárias. Humanas, se possível. Há um dilema ético-religioso que envolve tal pesquisa. Mas como cientista, sou agnóstico. Trabalho em prol do progresso da ciência, independente da fé. E fico à margem das discussões. A manipulação desse tipo de célula é proibida no país. Isso me lembra o formulário para a bolsa na Universidade de Pequim. Lá não há essa proibição. É provável que o futuro dessa linha de pesquisa esteja na China.
Cinco horas. Seminário dos mestrandos. Artigos traduzidos e discutidos. Ao todo três apresentações. Duas horas de sonolência contida. E perguntas constrangedoras aos expositores menos preparados. Depois disso um cafézinho. A chefe me questiona sobre o andamento do pedido da bolsa. O prazo se encerra amanhã. Ela claramente deseja que eu vá. No meio acadêmico, influência é poder. E ter contato com alguém que está na crista da onda em outro país é uma vantagem e tanto. Eu desconverso, amuado. Não revelei a ela o dilema. Não entenderia.
Iniciar uma pesquisa dessa monta em um país do exterior é uma estrada de duas vias. Uma delas leva a carreira e o conhecimento até a borda da fronteira atual, e além. Mas a outra afasta toda uma vida de amizades, família e prazeres cotidianos. Excitação e frustração não podem conviver.
Sete horas. Durante o jantar exponho novamente o problema a minha esposa. Poderia eu realizar um trabalho por lá e depois voltar? Talvez. Aqui esse tipo de pesquisa é proibido. Pode vir a ser liberado um dia. Ou não. Quem sabe ir à China seja a oportunidade de realizar algo incrível. Mas é praticamente um casamento com outro país. Sem certeza de que o divórcio vai ser possível no futuro. Posso trabalhar com as células-tronco embrionárias por dois anos e depois voltar e dar aulas, ou pesquisar outra coisa. Mas é como dar filé pro cachorro por dois anos. E depois pedir pra ele ser feliz com ração.
Nove e meia. Após o banho não consigo ver tevê. Finjo olhar pra ela, mas minha atenção se volta pra dentro. Sei que posso ter um excelente emprego assim que concluir o doutorado, em pesquisa ou docência, sem ir ao exterior. Ao mesmo tempo várias pessoas fariam tudo por uma oportunidade dessas. Mas na hora de abrir mão do que é mais importante em minha vida, eu pestanejo.
Afinal, qual o sentido da minha vida? Ser o máximo que puder na área que escolher? Ou viver junto aos amigos e à família, desfrutando momentos de prazer e convivência sem preço? Quanto vou me decepcionar se não for? E quanto vou lamentar por fazer minha esposa abrir mão da carreira? Ou por me tornar um estranho aos meus sobrinhos? Ou por não estar presente quando alguém que eu amo realmente precisar de mim?
Onze horas. Deito-me com o pensamento exausto. O formulário está preenchido. Entregarei ou não? Seria muito corajoso e bonito se eu dissesse que sim. Mas a verdade é que adormeço antes de decidir.