03 fevereiro 2010

Capítulo 2

Querido, acorde! Vai se atrasar de novo!

Nossa, preciso mesmo levantar. O rádio-relógio antigo sobre a cabeceira acusava quarenta minutos após sete horas, e piscava. A brisa do alvorecer soprava pela janela aberta e os sons dos passarinhos ecoavam nas paredes da mente. A noite de truco com cerveja ontem na oficina passou da conta. Alguma pulsação indefinida embaralhava a visão. O cheiro do café recém coado aumentava o mal-estar, mas certamente caiu bem com o comprimido.

Pontualmente oito horas. Um funcionário de confiança abre a oficina se o chefe não chegou, como hoje. Preciso arrumar mais alguns como ele e certamente posso me aposentar, daqui a uns vinte anos ou mais. A idéia de aposentadoria é estranha, mesmo porque sempre pensei em trabalhar até morrer. Talvez seja uma muleta psicológica. Uma luz no fim do túnel que não precisa nunca ser alcançada, mas sempre ser vista.

De carro até a oficina levo geralmente quinze minutos. Hoje foram dezessete, por causa de uma combinação infeliz dos semáforos. Sempre monitoro minuciosamente meu tempo, especialmente pras coisas rotineiras. Ao estacionar meu sedã japonês seminovo no fundo, já mergulho nos sons que inundam o ambiente. Máquinas em alta rotação, batidas e o som mecânico dos elevadores hidráulicos.

Chego às oito e meia. Olho tristemente para o antigo esportivo importado alemão, ainda encostado junto à parede à espera de peças. Devem chegar da Alemanha em algumas semanas. Vai acabar fazendo aniversário aqui comigo. Vantagem dos velhos bólidos: uma pechincha. Desvantagem: uma hora vem parar aqui. Aí o dono vai esquecer o luxo e lembrar o pepino. E a despesa. Cultuar ídolos do passado sai caro nesse mercado. Para o dono e para mim, que sirvo de estacionamento.

Vejo uma senhora com um pequeno hatch nacional novinho em folha. Sinalizo silenciosamente para um mecânico. Ele prontamente vai ao seu encontro. Sempre lembro minha equipe desse tipo de cliente. Senhoras com carros novos não levam pra oficina. Levam pra concessionária. Quando vem pra nós, tem que ter tapete vermelho, champanhe e arautos com trompetes. Nosso tapete é marrom. Aqui só servimos café e chá. Não temos nem som ambiente. Mas a idéia deve ser imaginada da melhor maneira que podemos. O sonho é uma das poucas coisas boas que são grátis.

Tenho quatorze funcionários ao todo. Bastante gente trabalhando comigo. Pensam que trabalham para mim. Mas na verdade cada um trabalha para si e eu trabalho para todos. Nenhum deles se esforça sinceramente para que o negócio dê certo. Se não ficar em cima, perdemos clientes a rodo. Sem clientes, não pagamos as contas. Nem os salários. Fazem muito bem seu trabalho de formigas, é certo. Mas o besouro aqui é quem os leva nas costas. Pior é que me veem como uma cigarra. Que eu só canto enquanto eles labutam. Ledo engano.

Meio dia. Passo em casa com tempo para aquela soneca após o almoço a dois. Logo a família deve se ampliar. Um cachorro, pois os filhos ainda devem levar alguns anos. Os fundos nunca são suficientes pra ter dois sonhos ao mesmo tempo. Falando em sonhos, vejo um colega na capa de uma revista. Ele é diretor financeiro de uma grande montadora. E pensar que cabulamos aula juntos para jogar baralho na cantina. Era pra ser meu sócio na oficina. Mas recusou. Disse que queria outra vida. Que o vôo solo não era pra ele. Acertou. E eu, acertei? Não sei.

À tarde geralmente as coisas esquentam. Não só o clima, mas os problemas começam a aparecer. Aquele carro que vai atrasar. O mecânico que não está passando bem. O cliente que quer ser atendido quando não há mais capacidade. O fornecedor que não retorna. E ainda aquele antigo processo que nunca se cala.

Odeio mecânico empurrão. No início dava comissão por vendas de produtos. Comecei então a perceber que o maior comissionado gerava o dobro de vendas do segundo colocado. Ao olhar mais de perto, percebi que era um empurrão. Clientes inadvertidos vinham para alinhar e balancear e saíam com quatro pneus novos. E trocavam também as pastilhas de freios, os filtros de combustível, de ar e de óleo junto com o referido líquido. Isso quando não os amortecedores, bandejas, coxins e bieletas, e a lista podia ser inacreditável. A demissão foi sumária e litigiosa. Seguiram-se impropérios de ambas as partes. Confesso que assustei-me com esse meu lado agressivo. E o processo trabalhista foi o gran finale. As comissões foram extintas. E eu fiquei mais duro, em todos os sentidos.

Cinco pras seis. Os últimos carros deixam o galpão e voltam pra alegria das suas garagens ou meio-fios. O assovio dos pneus no piso liso é música pros ouvidos, especialmente dos mecânicos ávidos por suas cervejinhas. O caixa é positivo, por pouco. A resposta pro imponente alemão expatriado é negativa.

Seis e vinte, a caminho do lar. No som as novas canções de velhos cantores. Entretenimento gratuito por dezenove minutos. A pressa de chegar em casa deveria encurtar esse tempo, mas não. Nunca vou entender isso.

Oito e vinte. Ao final do jantar de sobras, um filmezinho pra relaxar. Depois é ir pra cama tentar algo com a mulher. Às vezes dá certo, às vezes não. Preciso pesquisar se o filme precedente influencia no final feliz.

O cansaço físico se transfigura em lentidão mental. Cogito muitas coisas no silêncio noturno. Lembro-me dos amigos que fizeram mestrado ou aceitaram propostas no exterior e me coloco diante da escolha novamente. Alguns estão muito bem, outros nem tanto. Mas a comparação é inadequada. É só que somos condicionados a nos comparar como medida de sucesso.

Tudo poderia ter acontecido de outra maneira. Sempre penso que estaria ganhando mais como funcionário. Grandes empresas tinham interesse em mim. Infelizmente não foi recíproco. Ou felizmente, não sei. Um bom pacote de benefícios, férias remuneradas, plano de saúde, participação nos lucros e afins não seria nada mal. Também sei pensar como funcionário-formiga. De olhos fechados na escuridão das pálpebras tento repassar o que aconteceu de mais importante no dia. E na agenda de amanhã.

Nunca consigo, sempre pereço na tentativa.