04 fevereiro 2010

Capítulo 3

O despertador toca. A mesma melodia de sempre. Abro os olhos e vejo o gesso liso e a luminária de teto. Viro o rosto pra esquerda e contemplo o leito vazio e arrumado. Uma leve tristeza belisca o peito. Saio pela direita interrompendo os acordes agudos de Mozart quando o relógio acusa sete e trinta e um. A ausência do cheiro de café aumenta a solidão. O apartamento está silencioso demais.

Sete e quarenta. Saio do banho de toalha e visto camisa e calça. Um copo d'água é o que quebra o jejum. O estômago reclama, mas não vai receber mais nada por enquanto. O café da manhã não é o mesmo sozinho. Se fosse o único no mundo poderia viver sem comer? Talvez. Pensar nessas coisas é filosofia demais pra essa hora.

Cinco para as oito. A partida no carro da empresa é barulhenta. Vai rodar bastante hoje, companheiro. Como sempre. Mas primeiro uma parada rápida no escritório. Preciso pegar a mala marrom.

O segredo no ramo imobiliário é a carteira de clientes. Diversos corretores já deixaram a empresa levando um punhado deles. Além de virarem concorrência, ainda levam um talho da empresa. O patrão fica fulo. Por isso, nos obriga a deixar todas as anotações e contatos no trabalho. Numa feiosa mala de couro marrom. Talvez funcione. Eu não levaria uma mala horrenda dessas pra casa.

Oito e dez. Entro pela porta de vidro. Abro meu melhor sorriso e cumprimento a mais poderosa da empresa: a secretária. Ela é quem recebe as ligações e as pessoas. Segundo sua vontade, posso receber os bons contatos. Ou os mal-humorados. Os ricos. Ou os corretores concorrentes prospectando. Atuando na área de vendas aprendi o essencial rapidamente. Relação é poder. Bom fluxo com quem pode faz o céu mais azul. No presente caso, a simpática sorridente comanda.

Oito e meia. Jornal terminado, reviso a agenda. Visitas, cotações, pesquisas, reuniões para fechamento, vistorias e ligações. Muitas ligações. Começo por estas, reclinando na poltrona. Bom dia senhor, como vai? Muito bem e a senhora? É da corretora, pode falar um instante? Sim, a localização é excelente. Claro que posso. Como quiser. Infelizmente ele não aceitou a contra-oferta. Acho que podemos pedir um pouco mais. Está confirmada a visita às três. Por ela o negócio está fechado. Meus parabéns.

Ufa. A simpatia cem por cento cansa. E tem dias que simplesmente não há vontade. Porém, não há escolha também. O sorriso, mesmo que amarelo, é instrumento de trabalho.

Nove horas. Chego à pequena casa minutos antes do acertado. Bom dia. A senhora está pronta? Sim, espero. O dia está lindo. A senhora vai se surpreender. Não, é pertinho. Olhe só. Gostou? Também achei perfeita. Espere até ver o quintal. Sim, o gato vai adorar essa grama. Não tem república estudantil por perto, já verifiquei. O ônibus passa na rua que cruza. A sala é bem iluminada e ventilada. Eu entro em contato. Tenha um bom dia.

Onze horas. A rotina me entedia. Gosto de conversar. Mas o trabalho nos bastidores é que azeita o negócio. Visito casas e apartamentos anunciados. Vou à prefeitura e ao cartório verificar pendências. Ligo pra outras imobiliárias e corretores. Ligo pros síndicos. Contato clientes para verificar a satisfação com o novo imóvel. Atendo chamadas repassadas pela secretária. E prospecto novos clientes.

Meio dia. Almoço um salgado rápido. Se parar, canso. A esta hora a mulher está comendo leitoa na casa dos pais. Prometi comer verduras na sua ausência. Fica pra depois.

Mudar de empresa foi bom. Recebi um pequeno aumento de salário. O desafio é maior. Mas as férias foram postergadas. Pra que férias? Pra perceber que o trabalho não está a sua altura e almejar mais? Na correria nem tenho tempo pra pensar. Melhor ou pior? Sei lá.

Três horas. Encontro o jovem casal na portaria. Vamos ver mais um quarto-sala-cozinha. O segundo este mês, e muitos virão. Não se eu puder impedir, claro. Pois é, a vizinhança é tranquila. Perto do seu trabalho. Bom, ele vai ter que ir de carro. A cozinha é arejada. A garagem, bem posicionada. Sim, o piso demanda reforma. A pintura também. Mas por este preço é um excelente negócio. Não, não aceita carro. Parcela, mas só entrega as chaves quitado. Vou ver no banco. Vinte anos, está bom? A taxa depende da renda e do valor. Quanto de entrada? Excelente opção. Podem pensar sim. Estou procurando, e aviso se encontrar outros. Posso ligar na sexta pra saber o que decidiram? Ufa!

Seis horas. O tempo escorre quando trabalho. Parece que não faço mais nada. Nem vivo. No carro abafado, retorno a mala ao seu devido lugar. Sob as asas do patrão. Penso às vezes em mudar de vida. De país. De emprego. De lado da cama. Não sei. Esse trânsito me estressa. O patrão também. Não ter férias então, nem me diga.

Banho, jogo na tevê. Cheese-salada disque-entrega. Promessa cumprida. Com cerveja. Onze horas e estou na cama. À esquerda sinto frio. O meu casamento está perfeito. Nós nos amamos intensamente. Temos promessas sinceras de nunca separação. E eu aqui, sozinho e sem férias.

Quer saber? Hoje eu durmo do lado esquerdo.