Acordo sobressaltado. São seis e quarenta da manhã. O sol se infiltra lento e morno pela fresta horizontal da única palheta torta da veneziana em frente à cama. Olho ao lado e vejo a terna mulher em um sono profundo e com a boca docemente entreaberta, respirando num farfalhar ritmado.
Levanto-me num pulo, com o coração palpitando de atraso. O despertador falhou. De novo. Ou será que eu o desliguei inadvertidamente? De novo? Não importa. Agora são seis e quarenta e dois e eu tenho exatos dezoito minutos para estar na ala 3 do Hospital Municipal, onde trabalho.
Engulo um gole do chá gelado, bebendo direto da garrafa pra ganhar tempo, e sinto também o gosto da pasta de dentes. Oito minutos se passaram e eu estou no carro, levemente amarrotado embaixo do jaleco. Mas tanto faz. Os pacientes já têm problemas suficientes pra reparar nas roupas decrépitas de um médico apressado.
Chego esbaforido bem a tempo de passar o cartão-ponto digital. Alguns minutos de atraso, mas tudo bem. Sempre saio depois do horário e nunca recebi nada a mais por isso. Por que raios aceitei um emprego onde preciso marcar a hora de chegar e de sair? Como se alguns minutos extras no trabalho fossem me fazer produzir mais. Se é que meu trabalho pode ser chamado de produção.
A rotina é sempre a mesma. Um senhor com pneumonia, está aqui já há quatro dias. Uma mocinha com intoxicação alimentar que veio pra hidratação. Um jovem que sofreu queda de moto e fraturou o braço. E a lista ainda vai longe, o dia está só começando. As doenças mudam, as caras mudam, mas ainda assim sinto o peso da repetição de padrões em minhas têmporas.
Terminada a visita aos pacientes internados. Algumas mudanças de conduta, outras mantidas, e algumas altas. Vamos para a segunda rodada do serviço que nunca acaba: o pronto-socorro. Agora começa a correria. Pacientes sangrando, com dor e sofrimento, choro e pressa. Todos tem pressa. Até mesmo aquele rapaz que tem uma dor de cabeça inexplicável que surge sempre às segundas-feiras pela manhã. O mais impressionante nessa doença é que ela cede nos feriados. Ah, quase me esqueci de dizer. O referido rapaz já melhorou com um simples analgésico em comprimido. E está aguardando o atestado de atendimento. Com pressa.
Já passa da uma hora da tarde quando saio apressado pelas ruas. Dirijo com prazer meu compacto carro urbano. O ar-condicionado é meu pequeno luxo e a próxima uma hora no trânsito é meu recanto filosófico, onde volto meus pensamentos para dentro do meu ser. Almoço? Qualquer coisa rápida ao alcance da mão. Saúde? A dos outros interessa, sim.
Mais algumas horas de um trabalho nobre e repetitivo. A medicina é mais do mesmo. Não estou na elite que pode se gabar de ser a desbravadora de fronteiras na ciência da vida. Esses personagens são como artistas de tevê que admiro ao longe. Testando remédios, descobrindo doenças, dando entrevistas e conselhos ao grande público. Não comam A, façam B três vezes por semana, e perguntem ao seu médico sobre o risco de terem C.
Enquanto isso a prática é mais preto-e-branco. Mais alívio da alma. Dos outros, claro.
Seis horas. Hora de voltar pra casa. Felizmente hoje não tenho plantão. Mas amanhã não escapo. A rotina se desdobra em um tempo que eu não tenho. Nem sei se tenho a minha vida, quanto mais o meu tempo. Preciso parar de usar o possessivo.
Sete e meia, estou em casa. Agradeço o trânsito favorável. Minha esposa me recebe com um sorriso no que é o melhor momento do dia. É para isso que eu trabalho. Apesar de saber que mesmo não trabalhando tanto ainda teria esse sorriso, igualzinho. E talvez até mais vezes ao dia.
Após o jantar e o banho me deito exausto pensando em como poderia ser diferente. Talvez ter uma outra carreira. Não tenho coragem de dizer isso em voz alta. Meu superego me censura. Como assim? Você é médico! Tem uma profissão invejada e admirada. Recebe respeito e um salário acima da maioria das pessoas. Tem uma vida confortável e deveria ter orgulho do trabalho que realiza.
É mesmo, penso, covarde. Sinto que tenho mil outras capacidades, e que a vida poderia trazer outros caminhos tão felizes quanto o presente, ou mais. Mas o destino é mais forte. A pressão social é maior. Talvez eu esteja num caminho sem volta.
Minha mente falseia. As pálpebras começam a pesar deixando a fraca luz amarela fosca e indefinida.
O sono enfim vence o raciocínio.