A batida é robótica. Mas não é o marcapasso. Somente o relógio do celular. São oito e trinta. Havia tentado uma música mais inspiradora. Mas não acordava. Tinha que ser algo irritante, como uma manhã chuvosa antes do trabalho. Ou um bipe-bipe frenético e terrível.
Um achocolatado com leite é tudo que acho na cozinha. A mulher já saiu. Ela tem um trabalho regular e rotineiro. Sofrida é a rotina. Quem tem tenta fugir a todo custo. Mas ela traz calma e previsibilidade à vida. Gostaria de ter uma. Ou ao menos uma vida mais reta. Oito e cinquenta. Hora de ir pro Conservatório.
O trabalho do outro é sempre mais legal. O nosso, sempre mais difícil. Pior ainda quando o chamam de arte. Parece que não é trabalho, só diversão. Pela manhã dou aulas de musicalização e educação musical. É mais ou menos como alfabetizar alguém na música. Crianças, jovens e adultos aprendendo a extrair sons homogêneos e repetidos de instrumentos ou da própria voz. Quase sempre não conseguindo. Por isso estão aqui. Imagine passar horas ouvindo desafinação e disritmia de voz, violino ou mesmo de piano. E ainda ganhar pouco. É o preço da arte.
Nove horas. A primeira turma já está aguardando em silêncio. Sempre ensino que a disciplina e a persistência são a chave da música. Para ser um bom músico, basta. Pra ser um expoente mundial, precisa disso e muito mais que não pode ser ensinado. Iniciamos pelo aquecimento. Relaxamento vocal com sílabas e sons guturais. Estalos de línguas e dedos, sibilos e assovios, supostamente coordenados. Sempre em pé, para estimular a atividade do corpo. E inibir o sono. A seguir, vêm as notas básicas. Ainda engatinhando na leitura de partituras. Cantamos diversas vezes todas elas em uníssono: Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si. Cada nota é segura por alguns segundos, para assimilação de todos. Fazemos gestos com as mãos espalmadas pra baixo. Subimos um nível nas notas agudas e descemos nas graves. Uma escala imaginária. Repetimos quando alguém erra. E quando ninguém erra também. Depois solfejamos melodias infantis. Com algum sucesso. E com as mãos espalmadas pra baixo.
A turma das dez é o início da educação musical com violinos. Sei tocar bastante bem vários instrumentos, e o violino é um deles. Se trabalhasse somente com o que mais gosto, não conseguiria alunos em número suficiente pra pagar minhas contas. Por isso meu cardápio é variado. Começamos afinando os instrumentos. Sinto-me como o spalla, primeiro-violinista de uma orquestra. É pelo meu instrumento que todos os outros são afinados. Cada aluno com sua partitura à frente me observa. Repasso uma vez toda a melodia de apenas dez notas. Depois cada um faz uma pequena demonstração. Alguns estão aqui por ordem dos pais, outros por gosto pela música. Não me interessa. Aprendendo algo, todos somos beneficiados. Insensível, eu? Como todo músico, sou sensível até demais.
Onze horas é a hora do remédio. Pra aliviar a tensão. E tirar a dor de cabeça. Até a hora do almoço não tenho mais aulas. Não hoje. Amanhã, não sei. Cada dia é uma turma diferente num horário diferente. A minha "desrotina" diária.
Doze horas. Vou até o centro encontrar a minha esposa. Comemos num fast-food perto do seu escritório. Ela me fala do seu trabalho. E eu desafino algo sobre o meu.
Às duas horas começa o ensaio da Sinfônica. Visto meu personagem mais dramático. O pianista genial incompreendido. A Orquestra me lembra uma grande empresa cheia de egos. Cada um pensa em seu íntimo ser o mais importante e essencial. Um bolo só de cerejas, todas na cobertura. E sem recheio.
O maestro é o maioral. Segundo a sua visão vamos interpretar Bach, Beethoven e Rachmaninoff. Este é o meu favorito. Lembro um filme na infância onde o pianista-protagonista tem uma fixação por Rachmaninoff e um pai carrasco que o força além da sua capacidade, violentamente. Graças a esse filme me tornei pianista profissional. Ou por culpa dele. De qualquer jeito, ainda bem que meu pai não o assistiu.
O spalla, esse sim de verdade, é o substituto na ausência do maestro. Segundo maior ego na escala do grupo, mancomuna uma secreta revolução e derrubada do chefe. As trompas e o tímpano o apóiam. Um literal motim do corpo musical. Acredito que nenhuma outra orquestra tenha essa cultura predatória. Ou quero acreditar. E eu me encaixo no organograma, cacique entre caciques. O piano sempre é central numa orquestra. Ocupo o maior espaço individualmente. E forço meu ego proporcionalmente. Com dificuldade.
Não sou originalmente narcisista. Nem prepotente. Nem orgulhoso. Mas aprendi que, entre rosas, é preciso criar espinhos. Fui cruelmente pisoteado em outros grupos por ser prestativo e humilde. Deixei colocarem o piano atrás. Fiz solos sem estar em destaque. Suportei piadas e pequenas humilhações. Até soltar o leão e rugir. Então passei a ser respeitado entre os pares e a ocupar um lugar de respeito no repertório. E a fazer sucesso. A que preço? Não pergunte, não sei se pagaria novamente.
Oito horas. Despido do excesso de brilhantismo, tomo um banho quente. Estou exausto do pescoço pra cima e arredores. O exercício da genialidade cansa. A imodéstia também. Dizem que o talento é algo inato, interior. E sob essa desculpa me deixei levar até onde cheguei. Não podia desperdiçar. Dizem também que a matemática e a música têm muito em comum. Porque não fiz matemática? Não usaria o talento?
Dez e meia. Minha esposa lamenta a rotina. Não falei? E eu resmungo a disputa de prestígio. As dissonâncias. E a batalha diária por espaço. Não maior. Apenas igual. A igualdade é mais rara que a sobreposição. Assim como democracia é mais trabalhosa que ditadura.
Aqui em casa, ao menos, somos iguais. Temos problemas e discussões. Mas aceitamos fraquezas e insucessos. E podemos mudar de idéia e desprezar talentos inatos. Fazemos o que gostamos e temos vontade. E só.
Meu amor adormece. Mas eu permaneço vários minutos lutando com minha consciência. É uma disputa colossal. Um último pensamento ressoa em meus ouvidos: Quem chora menos pode mais. E quem pode mais dorme menos.