Levanto de súbito. O coração acelerado. A cabeça pulsa. Os lábios formigam. O sol traz calor e luz ao quarto. Dez horas. Já é tarde demais. Tudo isso se passa em meio segundo. Então vejo a mulher dormindo ao lado, pacífica e lindamente. Repentinamente me situo no tempo. Não há pressa. É domingo.
Domingo é um dia ímpar. O tempo deixa de ser a medida da vida. As horas transcorrem anônima e silenciosamente. O relógio é apenas um enfeite na parede. Levanto tranquilo e sigo descalço. Na cozinha, um gole d’água. Um vizinho apara a grama. Outro lava o carro. Crianças correm na calçada, a pé ou de bicicleta. Outro gole, copo na pia. Nada de louça hoje.
A esposa desperta com um beijo estalado. Feliz e sossegada, sabia que dia era. Havia dormido um sono reparador, pesado e sem sonhos. Eu não. Tenho tido sonhos turbulentos e confusos. Com o trabalho. Não o meu, mas outros. É sempre igual, sendo diferente. Um dia se passa em sonho. Cada dia uma profissão diferente. Não sou feliz no trabalho. Nem nos sonhos, acho. É estranho.
Vou ler um pouco. O livro marca a mesma página há semanas. Sinto culpa. Sim, eu adoro ler. Sim, o livro é ótimo. Sim, a desculpa é o tempo. Não, não tenho feito nada para mudar. Reclamo pra mim mesmo sobre a vida. Sobre como o tempo é tão escasso. Pelo menos para fazer o que realmente queremos. Mas sair desse ciclo é muito difícil. Persisto tentando, em vão. Até agora.
O almoço não tem hora. E vamos aonde temos vontade. Não tem que ficar no caminho de lugar nenhum. Nem perto. Não precisa ser barato. Nem rápido. E isso torna a refeição muito mais especial. Não é comer, mas apreciar. Não é nutrir, mas divertir-se. Não é envelhecer, mas viver. Todos os dias deveriam ser como domingo. Pelo menos conceitualmente. Será possível? Não sei.
À mesa, o assunto são meus sonhos. Ela sabe de minha insatisfação crônica. E tenta ajudar. Fala mal do seu trabalho. Conta os problemas que surgem. Mas sei que no geral ela gosta. É feliz. E não diminui minha tristeza saber que todos os trabalhos têm desvantagens. Não me consola que todas as pessoas tenham problemas. É mais intenso comigo. O meu trabalho não tem problemas. O problema sou eu.
Depois, vamos a um passeio no shopping. Relaxo, mas não consigo deixar de pensar. Penso muito todo o tempo. A maior parte dele sobre trabalho. Afinal, o que é trabalhar? Ocupar-se de algo útil para a sociedade? Labutar em troca de sustento? Buscar satisfação extra-familiar? Utilizar o tempo? Maximizar os talentos e dons? Ambicionar? O trabalho é somente o que se faz entre os momentos de felicidade. Pelo menos para mim agora. Acredito piamente que não é só. Eu quero estar errado.
Imagino a carreira como um trem sobre o trilho. Uma vez num sentido, é difícil desviar-se. Sair do trilho é abandonar o progresso até o momento. Os vários anos de aprendizado. A segurança da maestria. Os benefícios financeiros. A expectativa da família. O reconhecimento social. Enfim, enfrentar a força da inércia que nos leva a continuar em algo já iniciado. E o ser humano é assim por natureza. Uma onda destrói o castelo de areia na praia. A criança recomeça a construção sobre as ruínas. Sempre. Nem pensa em começar de outro lugar. É instintivo.
É fácil mudar de vida quando se sofre uma grande tragédia. Ou quando se perde tudo. Sem desmerecer o esforço dos que o fazem, mas não há opção. Todos apóiam. Tudo conspira a favor. Depois de um rompimento abrupto com a normalidade, a reviravolta é esperada.
O oposto ocorre quando a virada vem para quebrar o equilíbrio. Especialmente se tudo vai bem. O agente da mudança é um agressor da paz. Se algo der errado é sua a culpa. Não deveria ter mexido onde estava tudo funcionando. Nem arriscado o que já havia construído. O julgamento da raça humana é impiedoso. Principalmente aquele que vem de dentro.
Eu sou bom no que faço. Domino meu trabalho. Não sou o melhor do mundo. Nem da cidade. Mas quem me vê em ação se surpreenderia com minha insatisfação. A competência em algo não é reflexo da felicidade em realizá-lo. Eu desejo a mudança. Algo que me faça querer ser o melhor. Não em comparação com outros. Mas comigo.
O jantar hoje é pizza romântica. Saboreada com as mãos. Mais uma frugal alegria. Desses momentos tiro a força para viver. É nas pequenas coisas que mora a felicidade. Avancei algumas páginas no livro. Satisfeito, penso no dia. Nada como uma grande dose de família para equilibrar a vida. Vou me deitar com esperança.
Afasto todos os pensamentos realistas de que amanhã retornarei à rotina desgastante. Tento mentalizar positivamente, apesar da frustração. Estou chegando mais perto. Sei que em algum momento do futuro está a minha virada. Um sonho que estou construindo aos poucos, e acordado. Esqueço o ontem, e durmo o hoje. Para sonhar o amanhã.
22 fevereiro 2010
11 fevereiro 2010
Capítulo 5
Ouço o alarme do relógio. São sete horas. Desligo meu companheiro digital. É um velho japonês com calculadora. Confiável e muito trabalhador. Aspiro o ar fresco da manhã. Lá fora, o burburinho reflete o trânsito de veículos e pessoas. Minha mulher está se vestindo há algum tempo. Vou começar agora pra terminarmos juntos.
O café da manhã é na padaria da esquina. Pão com manteiga na chapa e café com leite. Penduramos a conta. Hoje ela quis dirigir. É estranho ser o passageiro. Tenho o costume de ser controlador. De tudo. Até inibo movimentos reflexos enquanto ela manobra. Mesmo sendo boa motorista. Fico no caminho enquanto ela vai trabalhar de carro.
O campus é um lugar muito agradável e arborizado. E mistura opostos estranhamente. A parte velha tem uma bela arquitetura moderna. Placas de concreto angulado, muito vidro e iluminação natural abundante. E a parte nova ironicamente tem construções que lembram os conjuntos habitacionais antigos. Parecem caixotes de tijolos com janelas pequenas. Certamente feitas por engenheiros visando economia. De material e de beleza.
Oito horas. Abro a porta do laboratório. Lá dentro vejo a funcionária da limpeza e estagiários. As engrenagens do sistema de pesquisa. Cumprimento-os brevemente e vou para o meu escaninho. Organizo a bagunça de papéis e livros e leio alguns. Retomo o fio da meada e esboço o experimento que venho imaginando há dias. Alguma inspiração na última noite pode ser a chave. E pode dar certo dessa vez. Olho de relance os formulários para aquela bolsa de incentivo para pós-graduandos. Que pode me levar à China. Por um instante, devaneio.
Às nove horas a chefe chega. Ela é a pesquisadora sênior do laboratório. Uma mente brilhante dedicada ao "estado da arte" em Neurociências. Que o digam suas filhas adolescentes, que lutam pela atenção da mãe divorciada. Todos lutamos. É injusto que tanto conhecimento esteja concentrado em uma só pessoa. Principalmente para ela. E eu, como doutorando em fase final, sou o vencedor na luta por atenção. Tristemente.
Nove e meia. Traçado o plano, mãos à obra. Chamo os estagiários para ensinar-lhes seu novo trabalho. A maioria vem excitada. Tudo é legal antes de se tornar repetitivo. Poupo-lhes o sofrimento antecipado e oculto este fato. Na incubadora, pego um ovo de galinha fecundado há algumas semanas. Dentro de uma câmara de fluxo laminar, abro cuidadosamente o ovo. Retiro o globo ocular preto, e deste, a retina fina e esbranquiçada. Após uma série de processos, adicionamos as células obtidas a um líquido cor-de-rosa, o meio de cultura. Abro a estufa para colocar as células que acabo de preparar. E mostro no microscópio invertido as que preparei ontem. É como um programa de culinária pela tevê. Pulamos a etapa em que o bolo vai ao forno.
Trabalhar com pesquisa é uma tarefa hercúlea e ingrata. Semanas a meses de esforços ininterruptos para adicionar um grão de areia à pirâmide do conhecimento. Os inocentes pensam que seu esforço é uma peça essencial para um grande avanço tecnológico. A realidade é que para nós, cientistas, nunca há grandes avanços. Tudo é moroso e a recompensa inexiste. Alguém com influência e bons contatos na imprensa vai levar toda a fama. E o seu árduo trabalho vai ser apenas uma nota de referência, uma curta linha nos créditos finais de um filme de cinema. E com a mesma popularidade. Ou seja, ninguém vê.
Onze horas. Os estagiários se divertem com os ovos. Ainda estragando boa parte deles. E eu mergulho nos artigos científicos. A parte mais trabalhosa da tese de doutorado é a leitura das referências bibliográficas. Leio tudo que possa ter alguma correlação com qualquer uma das etapas do meu experimento. E isso é bastante coisa. Certamente li mais nos últimos quatro anos que em todos os outros da minha vida. E sobre apenas um assunto chave. A guerra? A crise econômica? A morte da bezerra? Não estou sabendo. A única exceção do sub-tópico do sub-capítulo? Ah sim, na página mil duzentos e quarenta e sete do volume três, à esquerda, segundo parágrafo.
Meio dia. O restaurante da Universidade está lotado, como sempre. Resta um prato feito na cantina mais próxima. E voltar correndo pro laboratório.
Imediatamente inicio o experimento. O objetivo é estudar as células do sistema nervoso central. Na retina nós temos estas células sem precisar abrir o crânio do animal. Minha ambição maior é trabalhar com células-tronco embrionárias. Humanas, se possível. Há um dilema ético-religioso que envolve tal pesquisa. Mas como cientista, sou agnóstico. Trabalho em prol do progresso da ciência, independente da fé. E fico à margem das discussões. A manipulação desse tipo de célula é proibida no país. Isso me lembra o formulário para a bolsa na Universidade de Pequim. Lá não há essa proibição. É provável que o futuro dessa linha de pesquisa esteja na China.
Cinco horas. Seminário dos mestrandos. Artigos traduzidos e discutidos. Ao todo três apresentações. Duas horas de sonolência contida. E perguntas constrangedoras aos expositores menos preparados. Depois disso um cafézinho. A chefe me questiona sobre o andamento do pedido da bolsa. O prazo se encerra amanhã. Ela claramente deseja que eu vá. No meio acadêmico, influência é poder. E ter contato com alguém que está na crista da onda em outro país é uma vantagem e tanto. Eu desconverso, amuado. Não revelei a ela o dilema. Não entenderia.
Iniciar uma pesquisa dessa monta em um país do exterior é uma estrada de duas vias. Uma delas leva a carreira e o conhecimento até a borda da fronteira atual, e além. Mas a outra afasta toda uma vida de amizades, família e prazeres cotidianos. Excitação e frustração não podem conviver.
Sete horas. Durante o jantar exponho novamente o problema a minha esposa. Poderia eu realizar um trabalho por lá e depois voltar? Talvez. Aqui esse tipo de pesquisa é proibido. Pode vir a ser liberado um dia. Ou não. Quem sabe ir à China seja a oportunidade de realizar algo incrível. Mas é praticamente um casamento com outro país. Sem certeza de que o divórcio vai ser possível no futuro. Posso trabalhar com as células-tronco embrionárias por dois anos e depois voltar e dar aulas, ou pesquisar outra coisa. Mas é como dar filé pro cachorro por dois anos. E depois pedir pra ele ser feliz com ração.
Nove e meia. Após o banho não consigo ver tevê. Finjo olhar pra ela, mas minha atenção se volta pra dentro. Sei que posso ter um excelente emprego assim que concluir o doutorado, em pesquisa ou docência, sem ir ao exterior. Ao mesmo tempo várias pessoas fariam tudo por uma oportunidade dessas. Mas na hora de abrir mão do que é mais importante em minha vida, eu pestanejo.
Afinal, qual o sentido da minha vida? Ser o máximo que puder na área que escolher? Ou viver junto aos amigos e à família, desfrutando momentos de prazer e convivência sem preço? Quanto vou me decepcionar se não for? E quanto vou lamentar por fazer minha esposa abrir mão da carreira? Ou por me tornar um estranho aos meus sobrinhos? Ou por não estar presente quando alguém que eu amo realmente precisar de mim?
Onze horas. Deito-me com o pensamento exausto. O formulário está preenchido. Entregarei ou não? Seria muito corajoso e bonito se eu dissesse que sim. Mas a verdade é que adormeço antes de decidir.
O café da manhã é na padaria da esquina. Pão com manteiga na chapa e café com leite. Penduramos a conta. Hoje ela quis dirigir. É estranho ser o passageiro. Tenho o costume de ser controlador. De tudo. Até inibo movimentos reflexos enquanto ela manobra. Mesmo sendo boa motorista. Fico no caminho enquanto ela vai trabalhar de carro.
O campus é um lugar muito agradável e arborizado. E mistura opostos estranhamente. A parte velha tem uma bela arquitetura moderna. Placas de concreto angulado, muito vidro e iluminação natural abundante. E a parte nova ironicamente tem construções que lembram os conjuntos habitacionais antigos. Parecem caixotes de tijolos com janelas pequenas. Certamente feitas por engenheiros visando economia. De material e de beleza.
Oito horas. Abro a porta do laboratório. Lá dentro vejo a funcionária da limpeza e estagiários. As engrenagens do sistema de pesquisa. Cumprimento-os brevemente e vou para o meu escaninho. Organizo a bagunça de papéis e livros e leio alguns. Retomo o fio da meada e esboço o experimento que venho imaginando há dias. Alguma inspiração na última noite pode ser a chave. E pode dar certo dessa vez. Olho de relance os formulários para aquela bolsa de incentivo para pós-graduandos. Que pode me levar à China. Por um instante, devaneio.
Às nove horas a chefe chega. Ela é a pesquisadora sênior do laboratório. Uma mente brilhante dedicada ao "estado da arte" em Neurociências. Que o digam suas filhas adolescentes, que lutam pela atenção da mãe divorciada. Todos lutamos. É injusto que tanto conhecimento esteja concentrado em uma só pessoa. Principalmente para ela. E eu, como doutorando em fase final, sou o vencedor na luta por atenção. Tristemente.
Nove e meia. Traçado o plano, mãos à obra. Chamo os estagiários para ensinar-lhes seu novo trabalho. A maioria vem excitada. Tudo é legal antes de se tornar repetitivo. Poupo-lhes o sofrimento antecipado e oculto este fato. Na incubadora, pego um ovo de galinha fecundado há algumas semanas. Dentro de uma câmara de fluxo laminar, abro cuidadosamente o ovo. Retiro o globo ocular preto, e deste, a retina fina e esbranquiçada. Após uma série de processos, adicionamos as células obtidas a um líquido cor-de-rosa, o meio de cultura. Abro a estufa para colocar as células que acabo de preparar. E mostro no microscópio invertido as que preparei ontem. É como um programa de culinária pela tevê. Pulamos a etapa em que o bolo vai ao forno.
Trabalhar com pesquisa é uma tarefa hercúlea e ingrata. Semanas a meses de esforços ininterruptos para adicionar um grão de areia à pirâmide do conhecimento. Os inocentes pensam que seu esforço é uma peça essencial para um grande avanço tecnológico. A realidade é que para nós, cientistas, nunca há grandes avanços. Tudo é moroso e a recompensa inexiste. Alguém com influência e bons contatos na imprensa vai levar toda a fama. E o seu árduo trabalho vai ser apenas uma nota de referência, uma curta linha nos créditos finais de um filme de cinema. E com a mesma popularidade. Ou seja, ninguém vê.
Onze horas. Os estagiários se divertem com os ovos. Ainda estragando boa parte deles. E eu mergulho nos artigos científicos. A parte mais trabalhosa da tese de doutorado é a leitura das referências bibliográficas. Leio tudo que possa ter alguma correlação com qualquer uma das etapas do meu experimento. E isso é bastante coisa. Certamente li mais nos últimos quatro anos que em todos os outros da minha vida. E sobre apenas um assunto chave. A guerra? A crise econômica? A morte da bezerra? Não estou sabendo. A única exceção do sub-tópico do sub-capítulo? Ah sim, na página mil duzentos e quarenta e sete do volume três, à esquerda, segundo parágrafo.
Meio dia. O restaurante da Universidade está lotado, como sempre. Resta um prato feito na cantina mais próxima. E voltar correndo pro laboratório.
Imediatamente inicio o experimento. O objetivo é estudar as células do sistema nervoso central. Na retina nós temos estas células sem precisar abrir o crânio do animal. Minha ambição maior é trabalhar com células-tronco embrionárias. Humanas, se possível. Há um dilema ético-religioso que envolve tal pesquisa. Mas como cientista, sou agnóstico. Trabalho em prol do progresso da ciência, independente da fé. E fico à margem das discussões. A manipulação desse tipo de célula é proibida no país. Isso me lembra o formulário para a bolsa na Universidade de Pequim. Lá não há essa proibição. É provável que o futuro dessa linha de pesquisa esteja na China.
Cinco horas. Seminário dos mestrandos. Artigos traduzidos e discutidos. Ao todo três apresentações. Duas horas de sonolência contida. E perguntas constrangedoras aos expositores menos preparados. Depois disso um cafézinho. A chefe me questiona sobre o andamento do pedido da bolsa. O prazo se encerra amanhã. Ela claramente deseja que eu vá. No meio acadêmico, influência é poder. E ter contato com alguém que está na crista da onda em outro país é uma vantagem e tanto. Eu desconverso, amuado. Não revelei a ela o dilema. Não entenderia.
Iniciar uma pesquisa dessa monta em um país do exterior é uma estrada de duas vias. Uma delas leva a carreira e o conhecimento até a borda da fronteira atual, e além. Mas a outra afasta toda uma vida de amizades, família e prazeres cotidianos. Excitação e frustração não podem conviver.
Sete horas. Durante o jantar exponho novamente o problema a minha esposa. Poderia eu realizar um trabalho por lá e depois voltar? Talvez. Aqui esse tipo de pesquisa é proibido. Pode vir a ser liberado um dia. Ou não. Quem sabe ir à China seja a oportunidade de realizar algo incrível. Mas é praticamente um casamento com outro país. Sem certeza de que o divórcio vai ser possível no futuro. Posso trabalhar com as células-tronco embrionárias por dois anos e depois voltar e dar aulas, ou pesquisar outra coisa. Mas é como dar filé pro cachorro por dois anos. E depois pedir pra ele ser feliz com ração.
Nove e meia. Após o banho não consigo ver tevê. Finjo olhar pra ela, mas minha atenção se volta pra dentro. Sei que posso ter um excelente emprego assim que concluir o doutorado, em pesquisa ou docência, sem ir ao exterior. Ao mesmo tempo várias pessoas fariam tudo por uma oportunidade dessas. Mas na hora de abrir mão do que é mais importante em minha vida, eu pestanejo.
Afinal, qual o sentido da minha vida? Ser o máximo que puder na área que escolher? Ou viver junto aos amigos e à família, desfrutando momentos de prazer e convivência sem preço? Quanto vou me decepcionar se não for? E quanto vou lamentar por fazer minha esposa abrir mão da carreira? Ou por me tornar um estranho aos meus sobrinhos? Ou por não estar presente quando alguém que eu amo realmente precisar de mim?
Onze horas. Deito-me com o pensamento exausto. O formulário está preenchido. Entregarei ou não? Seria muito corajoso e bonito se eu dissesse que sim. Mas a verdade é que adormeço antes de decidir.
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08 fevereiro 2010
Capitulo 4
A batida é robótica. Mas não é o marcapasso. Somente o relógio do celular. São oito e trinta. Havia tentado uma música mais inspiradora. Mas não acordava. Tinha que ser algo irritante, como uma manhã chuvosa antes do trabalho. Ou um bipe-bipe frenético e terrível.
Um achocolatado com leite é tudo que acho na cozinha. A mulher já saiu. Ela tem um trabalho regular e rotineiro. Sofrida é a rotina. Quem tem tenta fugir a todo custo. Mas ela traz calma e previsibilidade à vida. Gostaria de ter uma. Ou ao menos uma vida mais reta. Oito e cinquenta. Hora de ir pro Conservatório.
O trabalho do outro é sempre mais legal. O nosso, sempre mais difícil. Pior ainda quando o chamam de arte. Parece que não é trabalho, só diversão. Pela manhã dou aulas de musicalização e educação musical. É mais ou menos como alfabetizar alguém na música. Crianças, jovens e adultos aprendendo a extrair sons homogêneos e repetidos de instrumentos ou da própria voz. Quase sempre não conseguindo. Por isso estão aqui. Imagine passar horas ouvindo desafinação e disritmia de voz, violino ou mesmo de piano. E ainda ganhar pouco. É o preço da arte.
Nove horas. A primeira turma já está aguardando em silêncio. Sempre ensino que a disciplina e a persistência são a chave da música. Para ser um bom músico, basta. Pra ser um expoente mundial, precisa disso e muito mais que não pode ser ensinado. Iniciamos pelo aquecimento. Relaxamento vocal com sílabas e sons guturais. Estalos de línguas e dedos, sibilos e assovios, supostamente coordenados. Sempre em pé, para estimular a atividade do corpo. E inibir o sono. A seguir, vêm as notas básicas. Ainda engatinhando na leitura de partituras. Cantamos diversas vezes todas elas em uníssono: Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si. Cada nota é segura por alguns segundos, para assimilação de todos. Fazemos gestos com as mãos espalmadas pra baixo. Subimos um nível nas notas agudas e descemos nas graves. Uma escala imaginária. Repetimos quando alguém erra. E quando ninguém erra também. Depois solfejamos melodias infantis. Com algum sucesso. E com as mãos espalmadas pra baixo.
A turma das dez é o início da educação musical com violinos. Sei tocar bastante bem vários instrumentos, e o violino é um deles. Se trabalhasse somente com o que mais gosto, não conseguiria alunos em número suficiente pra pagar minhas contas. Por isso meu cardápio é variado. Começamos afinando os instrumentos. Sinto-me como o spalla, primeiro-violinista de uma orquestra. É pelo meu instrumento que todos os outros são afinados. Cada aluno com sua partitura à frente me observa. Repasso uma vez toda a melodia de apenas dez notas. Depois cada um faz uma pequena demonstração. Alguns estão aqui por ordem dos pais, outros por gosto pela música. Não me interessa. Aprendendo algo, todos somos beneficiados. Insensível, eu? Como todo músico, sou sensível até demais.
Onze horas é a hora do remédio. Pra aliviar a tensão. E tirar a dor de cabeça. Até a hora do almoço não tenho mais aulas. Não hoje. Amanhã, não sei. Cada dia é uma turma diferente num horário diferente. A minha "desrotina" diária.
Doze horas. Vou até o centro encontrar a minha esposa. Comemos num fast-food perto do seu escritório. Ela me fala do seu trabalho. E eu desafino algo sobre o meu.
Às duas horas começa o ensaio da Sinfônica. Visto meu personagem mais dramático. O pianista genial incompreendido. A Orquestra me lembra uma grande empresa cheia de egos. Cada um pensa em seu íntimo ser o mais importante e essencial. Um bolo só de cerejas, todas na cobertura. E sem recheio.
O maestro é o maioral. Segundo a sua visão vamos interpretar Bach, Beethoven e Rachmaninoff. Este é o meu favorito. Lembro um filme na infância onde o pianista-protagonista tem uma fixação por Rachmaninoff e um pai carrasco que o força além da sua capacidade, violentamente. Graças a esse filme me tornei pianista profissional. Ou por culpa dele. De qualquer jeito, ainda bem que meu pai não o assistiu.
O spalla, esse sim de verdade, é o substituto na ausência do maestro. Segundo maior ego na escala do grupo, mancomuna uma secreta revolução e derrubada do chefe. As trompas e o tímpano o apóiam. Um literal motim do corpo musical. Acredito que nenhuma outra orquestra tenha essa cultura predatória. Ou quero acreditar. E eu me encaixo no organograma, cacique entre caciques. O piano sempre é central numa orquestra. Ocupo o maior espaço individualmente. E forço meu ego proporcionalmente. Com dificuldade.
Não sou originalmente narcisista. Nem prepotente. Nem orgulhoso. Mas aprendi que, entre rosas, é preciso criar espinhos. Fui cruelmente pisoteado em outros grupos por ser prestativo e humilde. Deixei colocarem o piano atrás. Fiz solos sem estar em destaque. Suportei piadas e pequenas humilhações. Até soltar o leão e rugir. Então passei a ser respeitado entre os pares e a ocupar um lugar de respeito no repertório. E a fazer sucesso. A que preço? Não pergunte, não sei se pagaria novamente.
Oito horas. Despido do excesso de brilhantismo, tomo um banho quente. Estou exausto do pescoço pra cima e arredores. O exercício da genialidade cansa. A imodéstia também. Dizem que o talento é algo inato, interior. E sob essa desculpa me deixei levar até onde cheguei. Não podia desperdiçar. Dizem também que a matemática e a música têm muito em comum. Porque não fiz matemática? Não usaria o talento?
Dez e meia. Minha esposa lamenta a rotina. Não falei? E eu resmungo a disputa de prestígio. As dissonâncias. E a batalha diária por espaço. Não maior. Apenas igual. A igualdade é mais rara que a sobreposição. Assim como democracia é mais trabalhosa que ditadura.
Aqui em casa, ao menos, somos iguais. Temos problemas e discussões. Mas aceitamos fraquezas e insucessos. E podemos mudar de idéia e desprezar talentos inatos. Fazemos o que gostamos e temos vontade. E só.
Meu amor adormece. Mas eu permaneço vários minutos lutando com minha consciência. É uma disputa colossal. Um último pensamento ressoa em meus ouvidos: Quem chora menos pode mais. E quem pode mais dorme menos.
Um achocolatado com leite é tudo que acho na cozinha. A mulher já saiu. Ela tem um trabalho regular e rotineiro. Sofrida é a rotina. Quem tem tenta fugir a todo custo. Mas ela traz calma e previsibilidade à vida. Gostaria de ter uma. Ou ao menos uma vida mais reta. Oito e cinquenta. Hora de ir pro Conservatório.
O trabalho do outro é sempre mais legal. O nosso, sempre mais difícil. Pior ainda quando o chamam de arte. Parece que não é trabalho, só diversão. Pela manhã dou aulas de musicalização e educação musical. É mais ou menos como alfabetizar alguém na música. Crianças, jovens e adultos aprendendo a extrair sons homogêneos e repetidos de instrumentos ou da própria voz. Quase sempre não conseguindo. Por isso estão aqui. Imagine passar horas ouvindo desafinação e disritmia de voz, violino ou mesmo de piano. E ainda ganhar pouco. É o preço da arte.
Nove horas. A primeira turma já está aguardando em silêncio. Sempre ensino que a disciplina e a persistência são a chave da música. Para ser um bom músico, basta. Pra ser um expoente mundial, precisa disso e muito mais que não pode ser ensinado. Iniciamos pelo aquecimento. Relaxamento vocal com sílabas e sons guturais. Estalos de línguas e dedos, sibilos e assovios, supostamente coordenados. Sempre em pé, para estimular a atividade do corpo. E inibir o sono. A seguir, vêm as notas básicas. Ainda engatinhando na leitura de partituras. Cantamos diversas vezes todas elas em uníssono: Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si. Cada nota é segura por alguns segundos, para assimilação de todos. Fazemos gestos com as mãos espalmadas pra baixo. Subimos um nível nas notas agudas e descemos nas graves. Uma escala imaginária. Repetimos quando alguém erra. E quando ninguém erra também. Depois solfejamos melodias infantis. Com algum sucesso. E com as mãos espalmadas pra baixo.
A turma das dez é o início da educação musical com violinos. Sei tocar bastante bem vários instrumentos, e o violino é um deles. Se trabalhasse somente com o que mais gosto, não conseguiria alunos em número suficiente pra pagar minhas contas. Por isso meu cardápio é variado. Começamos afinando os instrumentos. Sinto-me como o spalla, primeiro-violinista de uma orquestra. É pelo meu instrumento que todos os outros são afinados. Cada aluno com sua partitura à frente me observa. Repasso uma vez toda a melodia de apenas dez notas. Depois cada um faz uma pequena demonstração. Alguns estão aqui por ordem dos pais, outros por gosto pela música. Não me interessa. Aprendendo algo, todos somos beneficiados. Insensível, eu? Como todo músico, sou sensível até demais.
Onze horas é a hora do remédio. Pra aliviar a tensão. E tirar a dor de cabeça. Até a hora do almoço não tenho mais aulas. Não hoje. Amanhã, não sei. Cada dia é uma turma diferente num horário diferente. A minha "desrotina" diária.
Doze horas. Vou até o centro encontrar a minha esposa. Comemos num fast-food perto do seu escritório. Ela me fala do seu trabalho. E eu desafino algo sobre o meu.
Às duas horas começa o ensaio da Sinfônica. Visto meu personagem mais dramático. O pianista genial incompreendido. A Orquestra me lembra uma grande empresa cheia de egos. Cada um pensa em seu íntimo ser o mais importante e essencial. Um bolo só de cerejas, todas na cobertura. E sem recheio.
O maestro é o maioral. Segundo a sua visão vamos interpretar Bach, Beethoven e Rachmaninoff. Este é o meu favorito. Lembro um filme na infância onde o pianista-protagonista tem uma fixação por Rachmaninoff e um pai carrasco que o força além da sua capacidade, violentamente. Graças a esse filme me tornei pianista profissional. Ou por culpa dele. De qualquer jeito, ainda bem que meu pai não o assistiu.
O spalla, esse sim de verdade, é o substituto na ausência do maestro. Segundo maior ego na escala do grupo, mancomuna uma secreta revolução e derrubada do chefe. As trompas e o tímpano o apóiam. Um literal motim do corpo musical. Acredito que nenhuma outra orquestra tenha essa cultura predatória. Ou quero acreditar. E eu me encaixo no organograma, cacique entre caciques. O piano sempre é central numa orquestra. Ocupo o maior espaço individualmente. E forço meu ego proporcionalmente. Com dificuldade.
Não sou originalmente narcisista. Nem prepotente. Nem orgulhoso. Mas aprendi que, entre rosas, é preciso criar espinhos. Fui cruelmente pisoteado em outros grupos por ser prestativo e humilde. Deixei colocarem o piano atrás. Fiz solos sem estar em destaque. Suportei piadas e pequenas humilhações. Até soltar o leão e rugir. Então passei a ser respeitado entre os pares e a ocupar um lugar de respeito no repertório. E a fazer sucesso. A que preço? Não pergunte, não sei se pagaria novamente.
Oito horas. Despido do excesso de brilhantismo, tomo um banho quente. Estou exausto do pescoço pra cima e arredores. O exercício da genialidade cansa. A imodéstia também. Dizem que o talento é algo inato, interior. E sob essa desculpa me deixei levar até onde cheguei. Não podia desperdiçar. Dizem também que a matemática e a música têm muito em comum. Porque não fiz matemática? Não usaria o talento?
Dez e meia. Minha esposa lamenta a rotina. Não falei? E eu resmungo a disputa de prestígio. As dissonâncias. E a batalha diária por espaço. Não maior. Apenas igual. A igualdade é mais rara que a sobreposição. Assim como democracia é mais trabalhosa que ditadura.
Aqui em casa, ao menos, somos iguais. Temos problemas e discussões. Mas aceitamos fraquezas e insucessos. E podemos mudar de idéia e desprezar talentos inatos. Fazemos o que gostamos e temos vontade. E só.
Meu amor adormece. Mas eu permaneço vários minutos lutando com minha consciência. É uma disputa colossal. Um último pensamento ressoa em meus ouvidos: Quem chora menos pode mais. E quem pode mais dorme menos.
04 fevereiro 2010
Capítulo 3
O despertador toca. A mesma melodia de sempre. Abro os olhos e vejo o gesso liso e a luminária de teto. Viro o rosto pra esquerda e contemplo o leito vazio e arrumado. Uma leve tristeza belisca o peito. Saio pela direita interrompendo os acordes agudos de Mozart quando o relógio acusa sete e trinta e um. A ausência do cheiro de café aumenta a solidão. O apartamento está silencioso demais.
Sete e quarenta. Saio do banho de toalha e visto camisa e calça. Um copo d'água é o que quebra o jejum. O estômago reclama, mas não vai receber mais nada por enquanto. O café da manhã não é o mesmo sozinho. Se fosse o único no mundo poderia viver sem comer? Talvez. Pensar nessas coisas é filosofia demais pra essa hora.
Cinco para as oito. A partida no carro da empresa é barulhenta. Vai rodar bastante hoje, companheiro. Como sempre. Mas primeiro uma parada rápida no escritório. Preciso pegar a mala marrom.
O segredo no ramo imobiliário é a carteira de clientes. Diversos corretores já deixaram a empresa levando um punhado deles. Além de virarem concorrência, ainda levam um talho da empresa. O patrão fica fulo. Por isso, nos obriga a deixar todas as anotações e contatos no trabalho. Numa feiosa mala de couro marrom. Talvez funcione. Eu não levaria uma mala horrenda dessas pra casa.
Oito e dez. Entro pela porta de vidro. Abro meu melhor sorriso e cumprimento a mais poderosa da empresa: a secretária. Ela é quem recebe as ligações e as pessoas. Segundo sua vontade, posso receber os bons contatos. Ou os mal-humorados. Os ricos. Ou os corretores concorrentes prospectando. Atuando na área de vendas aprendi o essencial rapidamente. Relação é poder. Bom fluxo com quem pode faz o céu mais azul. No presente caso, a simpática sorridente comanda.
Oito e meia. Jornal terminado, reviso a agenda. Visitas, cotações, pesquisas, reuniões para fechamento, vistorias e ligações. Muitas ligações. Começo por estas, reclinando na poltrona. Bom dia senhor, como vai? Muito bem e a senhora? É da corretora, pode falar um instante? Sim, a localização é excelente. Claro que posso. Como quiser. Infelizmente ele não aceitou a contra-oferta. Acho que podemos pedir um pouco mais. Está confirmada a visita às três. Por ela o negócio está fechado. Meus parabéns.
Ufa. A simpatia cem por cento cansa. E tem dias que simplesmente não há vontade. Porém, não há escolha também. O sorriso, mesmo que amarelo, é instrumento de trabalho.
Nove horas. Chego à pequena casa minutos antes do acertado. Bom dia. A senhora está pronta? Sim, espero. O dia está lindo. A senhora vai se surpreender. Não, é pertinho. Olhe só. Gostou? Também achei perfeita. Espere até ver o quintal. Sim, o gato vai adorar essa grama. Não tem república estudantil por perto, já verifiquei. O ônibus passa na rua que cruza. A sala é bem iluminada e ventilada. Eu entro em contato. Tenha um bom dia.
Onze horas. A rotina me entedia. Gosto de conversar. Mas o trabalho nos bastidores é que azeita o negócio. Visito casas e apartamentos anunciados. Vou à prefeitura e ao cartório verificar pendências. Ligo pra outras imobiliárias e corretores. Ligo pros síndicos. Contato clientes para verificar a satisfação com o novo imóvel. Atendo chamadas repassadas pela secretária. E prospecto novos clientes.
Meio dia. Almoço um salgado rápido. Se parar, canso. A esta hora a mulher está comendo leitoa na casa dos pais. Prometi comer verduras na sua ausência. Fica pra depois.
Mudar de empresa foi bom. Recebi um pequeno aumento de salário. O desafio é maior. Mas as férias foram postergadas. Pra que férias? Pra perceber que o trabalho não está a sua altura e almejar mais? Na correria nem tenho tempo pra pensar. Melhor ou pior? Sei lá.
Três horas. Encontro o jovem casal na portaria. Vamos ver mais um quarto-sala-cozinha. O segundo este mês, e muitos virão. Não se eu puder impedir, claro. Pois é, a vizinhança é tranquila. Perto do seu trabalho. Bom, ele vai ter que ir de carro. A cozinha é arejada. A garagem, bem posicionada. Sim, o piso demanda reforma. A pintura também. Mas por este preço é um excelente negócio. Não, não aceita carro. Parcela, mas só entrega as chaves quitado. Vou ver no banco. Vinte anos, está bom? A taxa depende da renda e do valor. Quanto de entrada? Excelente opção. Podem pensar sim. Estou procurando, e aviso se encontrar outros. Posso ligar na sexta pra saber o que decidiram? Ufa!
Seis horas. O tempo escorre quando trabalho. Parece que não faço mais nada. Nem vivo. No carro abafado, retorno a mala ao seu devido lugar. Sob as asas do patrão. Penso às vezes em mudar de vida. De país. De emprego. De lado da cama. Não sei. Esse trânsito me estressa. O patrão também. Não ter férias então, nem me diga.
Banho, jogo na tevê. Cheese-salada disque-entrega. Promessa cumprida. Com cerveja. Onze horas e estou na cama. À esquerda sinto frio. O meu casamento está perfeito. Nós nos amamos intensamente. Temos promessas sinceras de nunca separação. E eu aqui, sozinho e sem férias.
Quer saber? Hoje eu durmo do lado esquerdo.
Sete e quarenta. Saio do banho de toalha e visto camisa e calça. Um copo d'água é o que quebra o jejum. O estômago reclama, mas não vai receber mais nada por enquanto. O café da manhã não é o mesmo sozinho. Se fosse o único no mundo poderia viver sem comer? Talvez. Pensar nessas coisas é filosofia demais pra essa hora.
Cinco para as oito. A partida no carro da empresa é barulhenta. Vai rodar bastante hoje, companheiro. Como sempre. Mas primeiro uma parada rápida no escritório. Preciso pegar a mala marrom.
O segredo no ramo imobiliário é a carteira de clientes. Diversos corretores já deixaram a empresa levando um punhado deles. Além de virarem concorrência, ainda levam um talho da empresa. O patrão fica fulo. Por isso, nos obriga a deixar todas as anotações e contatos no trabalho. Numa feiosa mala de couro marrom. Talvez funcione. Eu não levaria uma mala horrenda dessas pra casa.
Oito e dez. Entro pela porta de vidro. Abro meu melhor sorriso e cumprimento a mais poderosa da empresa: a secretária. Ela é quem recebe as ligações e as pessoas. Segundo sua vontade, posso receber os bons contatos. Ou os mal-humorados. Os ricos. Ou os corretores concorrentes prospectando. Atuando na área de vendas aprendi o essencial rapidamente. Relação é poder. Bom fluxo com quem pode faz o céu mais azul. No presente caso, a simpática sorridente comanda.
Oito e meia. Jornal terminado, reviso a agenda. Visitas, cotações, pesquisas, reuniões para fechamento, vistorias e ligações. Muitas ligações. Começo por estas, reclinando na poltrona. Bom dia senhor, como vai? Muito bem e a senhora? É da corretora, pode falar um instante? Sim, a localização é excelente. Claro que posso. Como quiser. Infelizmente ele não aceitou a contra-oferta. Acho que podemos pedir um pouco mais. Está confirmada a visita às três. Por ela o negócio está fechado. Meus parabéns.
Ufa. A simpatia cem por cento cansa. E tem dias que simplesmente não há vontade. Porém, não há escolha também. O sorriso, mesmo que amarelo, é instrumento de trabalho.
Nove horas. Chego à pequena casa minutos antes do acertado. Bom dia. A senhora está pronta? Sim, espero. O dia está lindo. A senhora vai se surpreender. Não, é pertinho. Olhe só. Gostou? Também achei perfeita. Espere até ver o quintal. Sim, o gato vai adorar essa grama. Não tem república estudantil por perto, já verifiquei. O ônibus passa na rua que cruza. A sala é bem iluminada e ventilada. Eu entro em contato. Tenha um bom dia.
Onze horas. A rotina me entedia. Gosto de conversar. Mas o trabalho nos bastidores é que azeita o negócio. Visito casas e apartamentos anunciados. Vou à prefeitura e ao cartório verificar pendências. Ligo pra outras imobiliárias e corretores. Ligo pros síndicos. Contato clientes para verificar a satisfação com o novo imóvel. Atendo chamadas repassadas pela secretária. E prospecto novos clientes.
Meio dia. Almoço um salgado rápido. Se parar, canso. A esta hora a mulher está comendo leitoa na casa dos pais. Prometi comer verduras na sua ausência. Fica pra depois.
Mudar de empresa foi bom. Recebi um pequeno aumento de salário. O desafio é maior. Mas as férias foram postergadas. Pra que férias? Pra perceber que o trabalho não está a sua altura e almejar mais? Na correria nem tenho tempo pra pensar. Melhor ou pior? Sei lá.
Três horas. Encontro o jovem casal na portaria. Vamos ver mais um quarto-sala-cozinha. O segundo este mês, e muitos virão. Não se eu puder impedir, claro. Pois é, a vizinhança é tranquila. Perto do seu trabalho. Bom, ele vai ter que ir de carro. A cozinha é arejada. A garagem, bem posicionada. Sim, o piso demanda reforma. A pintura também. Mas por este preço é um excelente negócio. Não, não aceita carro. Parcela, mas só entrega as chaves quitado. Vou ver no banco. Vinte anos, está bom? A taxa depende da renda e do valor. Quanto de entrada? Excelente opção. Podem pensar sim. Estou procurando, e aviso se encontrar outros. Posso ligar na sexta pra saber o que decidiram? Ufa!
Seis horas. O tempo escorre quando trabalho. Parece que não faço mais nada. Nem vivo. No carro abafado, retorno a mala ao seu devido lugar. Sob as asas do patrão. Penso às vezes em mudar de vida. De país. De emprego. De lado da cama. Não sei. Esse trânsito me estressa. O patrão também. Não ter férias então, nem me diga.
Banho, jogo na tevê. Cheese-salada disque-entrega. Promessa cumprida. Com cerveja. Onze horas e estou na cama. À esquerda sinto frio. O meu casamento está perfeito. Nós nos amamos intensamente. Temos promessas sinceras de nunca separação. E eu aqui, sozinho e sem férias.
Quer saber? Hoje eu durmo do lado esquerdo.
03 fevereiro 2010
Capítulo 2
Querido, acorde! Vai se atrasar de novo!
Nossa, preciso mesmo levantar. O rádio-relógio antigo sobre a cabeceira acusava quarenta minutos após sete horas, e piscava. A brisa do alvorecer soprava pela janela aberta e os sons dos passarinhos ecoavam nas paredes da mente. A noite de truco com cerveja ontem na oficina passou da conta. Alguma pulsação indefinida embaralhava a visão. O cheiro do café recém coado aumentava o mal-estar, mas certamente caiu bem com o comprimido.
Pontualmente oito horas. Um funcionário de confiança abre a oficina se o chefe não chegou, como hoje. Preciso arrumar mais alguns como ele e certamente posso me aposentar, daqui a uns vinte anos ou mais. A idéia de aposentadoria é estranha, mesmo porque sempre pensei em trabalhar até morrer. Talvez seja uma muleta psicológica. Uma luz no fim do túnel que não precisa nunca ser alcançada, mas sempre ser vista.
De carro até a oficina levo geralmente quinze minutos. Hoje foram dezessete, por causa de uma combinação infeliz dos semáforos. Sempre monitoro minuciosamente meu tempo, especialmente pras coisas rotineiras. Ao estacionar meu sedã japonês seminovo no fundo, já mergulho nos sons que inundam o ambiente. Máquinas em alta rotação, batidas e o som mecânico dos elevadores hidráulicos.
Chego às oito e meia. Olho tristemente para o antigo esportivo importado alemão, ainda encostado junto à parede à espera de peças. Devem chegar da Alemanha em algumas semanas. Vai acabar fazendo aniversário aqui comigo. Vantagem dos velhos bólidos: uma pechincha. Desvantagem: uma hora vem parar aqui. Aí o dono vai esquecer o luxo e lembrar o pepino. E a despesa. Cultuar ídolos do passado sai caro nesse mercado. Para o dono e para mim, que sirvo de estacionamento.
Vejo uma senhora com um pequeno hatch nacional novinho em folha. Sinalizo silenciosamente para um mecânico. Ele prontamente vai ao seu encontro. Sempre lembro minha equipe desse tipo de cliente. Senhoras com carros novos não levam pra oficina. Levam pra concessionária. Quando vem pra nós, tem que ter tapete vermelho, champanhe e arautos com trompetes. Nosso tapete é marrom. Aqui só servimos café e chá. Não temos nem som ambiente. Mas a idéia deve ser imaginada da melhor maneira que podemos. O sonho é uma das poucas coisas boas que são grátis.
Tenho quatorze funcionários ao todo. Bastante gente trabalhando comigo. Pensam que trabalham para mim. Mas na verdade cada um trabalha para si e eu trabalho para todos. Nenhum deles se esforça sinceramente para que o negócio dê certo. Se não ficar em cima, perdemos clientes a rodo. Sem clientes, não pagamos as contas. Nem os salários. Fazem muito bem seu trabalho de formigas, é certo. Mas o besouro aqui é quem os leva nas costas. Pior é que me veem como uma cigarra. Que eu só canto enquanto eles labutam. Ledo engano.
Meio dia. Passo em casa com tempo para aquela soneca após o almoço a dois. Logo a família deve se ampliar. Um cachorro, pois os filhos ainda devem levar alguns anos. Os fundos nunca são suficientes pra ter dois sonhos ao mesmo tempo. Falando em sonhos, vejo um colega na capa de uma revista. Ele é diretor financeiro de uma grande montadora. E pensar que cabulamos aula juntos para jogar baralho na cantina. Era pra ser meu sócio na oficina. Mas recusou. Disse que queria outra vida. Que o vôo solo não era pra ele. Acertou. E eu, acertei? Não sei.
À tarde geralmente as coisas esquentam. Não só o clima, mas os problemas começam a aparecer. Aquele carro que vai atrasar. O mecânico que não está passando bem. O cliente que quer ser atendido quando não há mais capacidade. O fornecedor que não retorna. E ainda aquele antigo processo que nunca se cala.
Odeio mecânico empurrão. No início dava comissão por vendas de produtos. Comecei então a perceber que o maior comissionado gerava o dobro de vendas do segundo colocado. Ao olhar mais de perto, percebi que era um empurrão. Clientes inadvertidos vinham para alinhar e balancear e saíam com quatro pneus novos. E trocavam também as pastilhas de freios, os filtros de combustível, de ar e de óleo junto com o referido líquido. Isso quando não os amortecedores, bandejas, coxins e bieletas, e a lista podia ser inacreditável. A demissão foi sumária e litigiosa. Seguiram-se impropérios de ambas as partes. Confesso que assustei-me com esse meu lado agressivo. E o processo trabalhista foi o gran finale. As comissões foram extintas. E eu fiquei mais duro, em todos os sentidos.
Cinco pras seis. Os últimos carros deixam o galpão e voltam pra alegria das suas garagens ou meio-fios. O assovio dos pneus no piso liso é música pros ouvidos, especialmente dos mecânicos ávidos por suas cervejinhas. O caixa é positivo, por pouco. A resposta pro imponente alemão expatriado é negativa.
Seis e vinte, a caminho do lar. No som as novas canções de velhos cantores. Entretenimento gratuito por dezenove minutos. A pressa de chegar em casa deveria encurtar esse tempo, mas não. Nunca vou entender isso.
Oito e vinte. Ao final do jantar de sobras, um filmezinho pra relaxar. Depois é ir pra cama tentar algo com a mulher. Às vezes dá certo, às vezes não. Preciso pesquisar se o filme precedente influencia no final feliz.
O cansaço físico se transfigura em lentidão mental. Cogito muitas coisas no silêncio noturno. Lembro-me dos amigos que fizeram mestrado ou aceitaram propostas no exterior e me coloco diante da escolha novamente. Alguns estão muito bem, outros nem tanto. Mas a comparação é inadequada. É só que somos condicionados a nos comparar como medida de sucesso.
Tudo poderia ter acontecido de outra maneira. Sempre penso que estaria ganhando mais como funcionário. Grandes empresas tinham interesse em mim. Infelizmente não foi recíproco. Ou felizmente, não sei. Um bom pacote de benefícios, férias remuneradas, plano de saúde, participação nos lucros e afins não seria nada mal. Também sei pensar como funcionário-formiga. De olhos fechados na escuridão das pálpebras tento repassar o que aconteceu de mais importante no dia. E na agenda de amanhã.
Nunca consigo, sempre pereço na tentativa.
Nossa, preciso mesmo levantar. O rádio-relógio antigo sobre a cabeceira acusava quarenta minutos após sete horas, e piscava. A brisa do alvorecer soprava pela janela aberta e os sons dos passarinhos ecoavam nas paredes da mente. A noite de truco com cerveja ontem na oficina passou da conta. Alguma pulsação indefinida embaralhava a visão. O cheiro do café recém coado aumentava o mal-estar, mas certamente caiu bem com o comprimido.
Pontualmente oito horas. Um funcionário de confiança abre a oficina se o chefe não chegou, como hoje. Preciso arrumar mais alguns como ele e certamente posso me aposentar, daqui a uns vinte anos ou mais. A idéia de aposentadoria é estranha, mesmo porque sempre pensei em trabalhar até morrer. Talvez seja uma muleta psicológica. Uma luz no fim do túnel que não precisa nunca ser alcançada, mas sempre ser vista.
De carro até a oficina levo geralmente quinze minutos. Hoje foram dezessete, por causa de uma combinação infeliz dos semáforos. Sempre monitoro minuciosamente meu tempo, especialmente pras coisas rotineiras. Ao estacionar meu sedã japonês seminovo no fundo, já mergulho nos sons que inundam o ambiente. Máquinas em alta rotação, batidas e o som mecânico dos elevadores hidráulicos.
Chego às oito e meia. Olho tristemente para o antigo esportivo importado alemão, ainda encostado junto à parede à espera de peças. Devem chegar da Alemanha em algumas semanas. Vai acabar fazendo aniversário aqui comigo. Vantagem dos velhos bólidos: uma pechincha. Desvantagem: uma hora vem parar aqui. Aí o dono vai esquecer o luxo e lembrar o pepino. E a despesa. Cultuar ídolos do passado sai caro nesse mercado. Para o dono e para mim, que sirvo de estacionamento.
Vejo uma senhora com um pequeno hatch nacional novinho em folha. Sinalizo silenciosamente para um mecânico. Ele prontamente vai ao seu encontro. Sempre lembro minha equipe desse tipo de cliente. Senhoras com carros novos não levam pra oficina. Levam pra concessionária. Quando vem pra nós, tem que ter tapete vermelho, champanhe e arautos com trompetes. Nosso tapete é marrom. Aqui só servimos café e chá. Não temos nem som ambiente. Mas a idéia deve ser imaginada da melhor maneira que podemos. O sonho é uma das poucas coisas boas que são grátis.
Tenho quatorze funcionários ao todo. Bastante gente trabalhando comigo. Pensam que trabalham para mim. Mas na verdade cada um trabalha para si e eu trabalho para todos. Nenhum deles se esforça sinceramente para que o negócio dê certo. Se não ficar em cima, perdemos clientes a rodo. Sem clientes, não pagamos as contas. Nem os salários. Fazem muito bem seu trabalho de formigas, é certo. Mas o besouro aqui é quem os leva nas costas. Pior é que me veem como uma cigarra. Que eu só canto enquanto eles labutam. Ledo engano.
Meio dia. Passo em casa com tempo para aquela soneca após o almoço a dois. Logo a família deve se ampliar. Um cachorro, pois os filhos ainda devem levar alguns anos. Os fundos nunca são suficientes pra ter dois sonhos ao mesmo tempo. Falando em sonhos, vejo um colega na capa de uma revista. Ele é diretor financeiro de uma grande montadora. E pensar que cabulamos aula juntos para jogar baralho na cantina. Era pra ser meu sócio na oficina. Mas recusou. Disse que queria outra vida. Que o vôo solo não era pra ele. Acertou. E eu, acertei? Não sei.
À tarde geralmente as coisas esquentam. Não só o clima, mas os problemas começam a aparecer. Aquele carro que vai atrasar. O mecânico que não está passando bem. O cliente que quer ser atendido quando não há mais capacidade. O fornecedor que não retorna. E ainda aquele antigo processo que nunca se cala.
Odeio mecânico empurrão. No início dava comissão por vendas de produtos. Comecei então a perceber que o maior comissionado gerava o dobro de vendas do segundo colocado. Ao olhar mais de perto, percebi que era um empurrão. Clientes inadvertidos vinham para alinhar e balancear e saíam com quatro pneus novos. E trocavam também as pastilhas de freios, os filtros de combustível, de ar e de óleo junto com o referido líquido. Isso quando não os amortecedores, bandejas, coxins e bieletas, e a lista podia ser inacreditável. A demissão foi sumária e litigiosa. Seguiram-se impropérios de ambas as partes. Confesso que assustei-me com esse meu lado agressivo. E o processo trabalhista foi o gran finale. As comissões foram extintas. E eu fiquei mais duro, em todos os sentidos.
Cinco pras seis. Os últimos carros deixam o galpão e voltam pra alegria das suas garagens ou meio-fios. O assovio dos pneus no piso liso é música pros ouvidos, especialmente dos mecânicos ávidos por suas cervejinhas. O caixa é positivo, por pouco. A resposta pro imponente alemão expatriado é negativa.
Seis e vinte, a caminho do lar. No som as novas canções de velhos cantores. Entretenimento gratuito por dezenove minutos. A pressa de chegar em casa deveria encurtar esse tempo, mas não. Nunca vou entender isso.
Oito e vinte. Ao final do jantar de sobras, um filmezinho pra relaxar. Depois é ir pra cama tentar algo com a mulher. Às vezes dá certo, às vezes não. Preciso pesquisar se o filme precedente influencia no final feliz.
O cansaço físico se transfigura em lentidão mental. Cogito muitas coisas no silêncio noturno. Lembro-me dos amigos que fizeram mestrado ou aceitaram propostas no exterior e me coloco diante da escolha novamente. Alguns estão muito bem, outros nem tanto. Mas a comparação é inadequada. É só que somos condicionados a nos comparar como medida de sucesso.
Tudo poderia ter acontecido de outra maneira. Sempre penso que estaria ganhando mais como funcionário. Grandes empresas tinham interesse em mim. Infelizmente não foi recíproco. Ou felizmente, não sei. Um bom pacote de benefícios, férias remuneradas, plano de saúde, participação nos lucros e afins não seria nada mal. Também sei pensar como funcionário-formiga. De olhos fechados na escuridão das pálpebras tento repassar o que aconteceu de mais importante no dia. E na agenda de amanhã.
Nunca consigo, sempre pereço na tentativa.
02 fevereiro 2010
Capítulo 1
Acordo sobressaltado. São seis e quarenta da manhã. O sol se infiltra lento e morno pela fresta horizontal da única palheta torta da veneziana em frente à cama. Olho ao lado e vejo a terna mulher em um sono profundo e com a boca docemente entreaberta, respirando num farfalhar ritmado.
Levanto-me num pulo, com o coração palpitando de atraso. O despertador falhou. De novo. Ou será que eu o desliguei inadvertidamente? De novo? Não importa. Agora são seis e quarenta e dois e eu tenho exatos dezoito minutos para estar na ala 3 do Hospital Municipal, onde trabalho.
Engulo um gole do chá gelado, bebendo direto da garrafa pra ganhar tempo, e sinto também o gosto da pasta de dentes. Oito minutos se passaram e eu estou no carro, levemente amarrotado embaixo do jaleco. Mas tanto faz. Os pacientes já têm problemas suficientes pra reparar nas roupas decrépitas de um médico apressado.
Chego esbaforido bem a tempo de passar o cartão-ponto digital. Alguns minutos de atraso, mas tudo bem. Sempre saio depois do horário e nunca recebi nada a mais por isso. Por que raios aceitei um emprego onde preciso marcar a hora de chegar e de sair? Como se alguns minutos extras no trabalho fossem me fazer produzir mais. Se é que meu trabalho pode ser chamado de produção.
A rotina é sempre a mesma. Um senhor com pneumonia, está aqui já há quatro dias. Uma mocinha com intoxicação alimentar que veio pra hidratação. Um jovem que sofreu queda de moto e fraturou o braço. E a lista ainda vai longe, o dia está só começando. As doenças mudam, as caras mudam, mas ainda assim sinto o peso da repetição de padrões em minhas têmporas.
Terminada a visita aos pacientes internados. Algumas mudanças de conduta, outras mantidas, e algumas altas. Vamos para a segunda rodada do serviço que nunca acaba: o pronto-socorro. Agora começa a correria. Pacientes sangrando, com dor e sofrimento, choro e pressa. Todos tem pressa. Até mesmo aquele rapaz que tem uma dor de cabeça inexplicável que surge sempre às segundas-feiras pela manhã. O mais impressionante nessa doença é que ela cede nos feriados. Ah, quase me esqueci de dizer. O referido rapaz já melhorou com um simples analgésico em comprimido. E está aguardando o atestado de atendimento. Com pressa.
Já passa da uma hora da tarde quando saio apressado pelas ruas. Dirijo com prazer meu compacto carro urbano. O ar-condicionado é meu pequeno luxo e a próxima uma hora no trânsito é meu recanto filosófico, onde volto meus pensamentos para dentro do meu ser. Almoço? Qualquer coisa rápida ao alcance da mão. Saúde? A dos outros interessa, sim.
Mais algumas horas de um trabalho nobre e repetitivo. A medicina é mais do mesmo. Não estou na elite que pode se gabar de ser a desbravadora de fronteiras na ciência da vida. Esses personagens são como artistas de tevê que admiro ao longe. Testando remédios, descobrindo doenças, dando entrevistas e conselhos ao grande público. Não comam A, façam B três vezes por semana, e perguntem ao seu médico sobre o risco de terem C.
Enquanto isso a prática é mais preto-e-branco. Mais alívio da alma. Dos outros, claro.
Seis horas. Hora de voltar pra casa. Felizmente hoje não tenho plantão. Mas amanhã não escapo. A rotina se desdobra em um tempo que eu não tenho. Nem sei se tenho a minha vida, quanto mais o meu tempo. Preciso parar de usar o possessivo.
Sete e meia, estou em casa. Agradeço o trânsito favorável. Minha esposa me recebe com um sorriso no que é o melhor momento do dia. É para isso que eu trabalho. Apesar de saber que mesmo não trabalhando tanto ainda teria esse sorriso, igualzinho. E talvez até mais vezes ao dia.
Após o jantar e o banho me deito exausto pensando em como poderia ser diferente. Talvez ter uma outra carreira. Não tenho coragem de dizer isso em voz alta. Meu superego me censura. Como assim? Você é médico! Tem uma profissão invejada e admirada. Recebe respeito e um salário acima da maioria das pessoas. Tem uma vida confortável e deveria ter orgulho do trabalho que realiza.
É mesmo, penso, covarde. Sinto que tenho mil outras capacidades, e que a vida poderia trazer outros caminhos tão felizes quanto o presente, ou mais. Mas o destino é mais forte. A pressão social é maior. Talvez eu esteja num caminho sem volta.
Minha mente falseia. As pálpebras começam a pesar deixando a fraca luz amarela fosca e indefinida.
O sono enfim vence o raciocínio.
Levanto-me num pulo, com o coração palpitando de atraso. O despertador falhou. De novo. Ou será que eu o desliguei inadvertidamente? De novo? Não importa. Agora são seis e quarenta e dois e eu tenho exatos dezoito minutos para estar na ala 3 do Hospital Municipal, onde trabalho.
Engulo um gole do chá gelado, bebendo direto da garrafa pra ganhar tempo, e sinto também o gosto da pasta de dentes. Oito minutos se passaram e eu estou no carro, levemente amarrotado embaixo do jaleco. Mas tanto faz. Os pacientes já têm problemas suficientes pra reparar nas roupas decrépitas de um médico apressado.
Chego esbaforido bem a tempo de passar o cartão-ponto digital. Alguns minutos de atraso, mas tudo bem. Sempre saio depois do horário e nunca recebi nada a mais por isso. Por que raios aceitei um emprego onde preciso marcar a hora de chegar e de sair? Como se alguns minutos extras no trabalho fossem me fazer produzir mais. Se é que meu trabalho pode ser chamado de produção.
A rotina é sempre a mesma. Um senhor com pneumonia, está aqui já há quatro dias. Uma mocinha com intoxicação alimentar que veio pra hidratação. Um jovem que sofreu queda de moto e fraturou o braço. E a lista ainda vai longe, o dia está só começando. As doenças mudam, as caras mudam, mas ainda assim sinto o peso da repetição de padrões em minhas têmporas.
Terminada a visita aos pacientes internados. Algumas mudanças de conduta, outras mantidas, e algumas altas. Vamos para a segunda rodada do serviço que nunca acaba: o pronto-socorro. Agora começa a correria. Pacientes sangrando, com dor e sofrimento, choro e pressa. Todos tem pressa. Até mesmo aquele rapaz que tem uma dor de cabeça inexplicável que surge sempre às segundas-feiras pela manhã. O mais impressionante nessa doença é que ela cede nos feriados. Ah, quase me esqueci de dizer. O referido rapaz já melhorou com um simples analgésico em comprimido. E está aguardando o atestado de atendimento. Com pressa.
Já passa da uma hora da tarde quando saio apressado pelas ruas. Dirijo com prazer meu compacto carro urbano. O ar-condicionado é meu pequeno luxo e a próxima uma hora no trânsito é meu recanto filosófico, onde volto meus pensamentos para dentro do meu ser. Almoço? Qualquer coisa rápida ao alcance da mão. Saúde? A dos outros interessa, sim.
Mais algumas horas de um trabalho nobre e repetitivo. A medicina é mais do mesmo. Não estou na elite que pode se gabar de ser a desbravadora de fronteiras na ciência da vida. Esses personagens são como artistas de tevê que admiro ao longe. Testando remédios, descobrindo doenças, dando entrevistas e conselhos ao grande público. Não comam A, façam B três vezes por semana, e perguntem ao seu médico sobre o risco de terem C.
Enquanto isso a prática é mais preto-e-branco. Mais alívio da alma. Dos outros, claro.
Seis horas. Hora de voltar pra casa. Felizmente hoje não tenho plantão. Mas amanhã não escapo. A rotina se desdobra em um tempo que eu não tenho. Nem sei se tenho a minha vida, quanto mais o meu tempo. Preciso parar de usar o possessivo.
Sete e meia, estou em casa. Agradeço o trânsito favorável. Minha esposa me recebe com um sorriso no que é o melhor momento do dia. É para isso que eu trabalho. Apesar de saber que mesmo não trabalhando tanto ainda teria esse sorriso, igualzinho. E talvez até mais vezes ao dia.
Após o jantar e o banho me deito exausto pensando em como poderia ser diferente. Talvez ter uma outra carreira. Não tenho coragem de dizer isso em voz alta. Meu superego me censura. Como assim? Você é médico! Tem uma profissão invejada e admirada. Recebe respeito e um salário acima da maioria das pessoas. Tem uma vida confortável e deveria ter orgulho do trabalho que realiza.
É mesmo, penso, covarde. Sinto que tenho mil outras capacidades, e que a vida poderia trazer outros caminhos tão felizes quanto o presente, ou mais. Mas o destino é mais forte. A pressão social é maior. Talvez eu esteja num caminho sem volta.
Minha mente falseia. As pálpebras começam a pesar deixando a fraca luz amarela fosca e indefinida.
O sono enfim vence o raciocínio.
01 fevereiro 2010
Prólogo
A maior satisfação de uma pessoa é olhar para o passado e se orgulhar dos anos vividos. A plenitude da vida. O sabor de uma conquista especial. O sucesso como filho ou filha, pai ou mãe, irmão ou irmã. A admiração e respeito dos amigos e colegas da vida. O legado deixado para a humanidade, por mínimo que seja. E a lembrança e a saudade que sua eventual partida ocasionaria.
Porém, enquanto rumamos para este momento, uma série de decisões interdependentes deve ser tomada. A cada passo, uma escolha. Um caminho que leva a um desfecho único na miríade de possibilidades.
Torna-se então essencial que as escolhas sejam conscientes e que a felicidade esteja na trilha a ser seguida. Não podemos esperar o final para concluir que valeu ou não a pena. É preciso sentir a satisfação no momento presente para que a vida não seja desperdiçada e que a satisfação supramencionada não se transfigure em frustração. Ou até desespero, uma vez que naquele momento pouco pode ser feito para contornar os anos pregressos.
Como forma de difundir esse fato, as próximas linhas foram escritas. Para que as decisões sejam conscientes de que a felicidade deve ser colocada no caminho da vida. Somente assim ela poderá ser encontrada no final.
Porém, enquanto rumamos para este momento, uma série de decisões interdependentes deve ser tomada. A cada passo, uma escolha. Um caminho que leva a um desfecho único na miríade de possibilidades.
Torna-se então essencial que as escolhas sejam conscientes e que a felicidade esteja na trilha a ser seguida. Não podemos esperar o final para concluir que valeu ou não a pena. É preciso sentir a satisfação no momento presente para que a vida não seja desperdiçada e que a satisfação supramencionada não se transfigure em frustração. Ou até desespero, uma vez que naquele momento pouco pode ser feito para contornar os anos pregressos.
Como forma de difundir esse fato, as próximas linhas foram escritas. Para que as decisões sejam conscientes de que a felicidade deve ser colocada no caminho da vida. Somente assim ela poderá ser encontrada no final.
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