27 setembro 2010

Capítulo 12

Subitamente, consciente. Acordo do sonho com formigamento visual, e avisto o plafon quadrado no teto. Faixas de luz forte escapam da cortina espessa e contornam a parede à esquerda. A esposa não está no quarto. O forte e delicioso aroma de café me desperta por completo.

Saio para a varanda ainda de pijama, e o café-da-manhã está servido. Minha mulher sorri de camisola e me dá um beijo feliz, seguido por uma torrada amanteigada. Sento no lugar de sempre e apreciamos a vista do nosso décimo-sexto andar. Durante o desjejum conversamos sobre as atividades programadas para hoje. Nenhuma. O que passar pela cabeça pode acontecer em seguida.

Trocamos de roupa e descemos para uma caminhada pelo bairro. Nada como um passeio despretensioso no fim de semana, e uma agradável conversa com a pessoa que mais me importa. Os sonhos? Ainda os tenho. Alguns bons, outros nem tanto. Todos meio surreais, improváveis. Mas ainda assim divertidos.

Uma idéia surge, e eu ligo para alguns amigos. Que tal um churrasco em casa? Ok, e nós compramos a carne! Combinado! A hora que quiserem, hoje eu dei folga para o relógio. É, daqui pra frente serei um excelente patrão para ele. Até mais! Voltamos para casa e vamos de carro ao mercado. No corredor dos caixas, encontro outro amigo. Olá, tudo bem? Que ótimo! Pois é, vai ter churrasco em casa hoje, vamos? Ah, trabalhar? Puxa, que pena... Não, não estou mais lá, eu saí essa semana. Não sei ainda. Mas fique tranquilo, que eu estou muito bem! Até logo, e lembranças à família.

É impressionante o efeito que a situação de desemprego causa nas pessoas. Como se fosse uma doença, quase um falecimento. Todos dizem sentir muito, expressando tristeza. Se sentissem o mesmo que eu, seria felicidade. O ideal é que houvesse palavras diferentes para as situações distintas. Uma delas, o desemprego, com toda a conotação negativa: sem emprego, sem opção e involuntário. E outra, sinemprego, anemprego, inemprego, etc, significando sem emprego, sem desejo por emprego e livremente assumido. O prefixo 'des' atribui passividade, como se a responsabilidade pela situação fosse externa à pessoa. E isso incita pena nos demais. Pode-se argumentar que é só dizer 'desemprego voluntário'. Mas parece, e frequentemente é, eufemismo deslavado para amenizar o fracasso que o cidadão sente.

Já em casa, preparamos as coisas. Os amigos chegam e acendemos o fogo. Bebidas no freezer e a diversão começa. Muitas risadas, histórias do presente e do passado. Várias horas de qualidade voam, o há de melhor para fazer na vida.

Todos demonstram certo receio quando digo que me demiti. Aguardam alguns segundos para se certificarem que eu estou bem com essa decisão. E depois relaxam e curtem o momento comigo. Encarar as coisas com bom humor nos faz sentir melhor. E é para isso que existem os amigos. Claro que não estou feliz porque estou desempregado. A felicidade é pelo começo da nova jornada. Foi preciso sair da inércia para buscar a realização. E isso significou largar o emprego. Deixar a velha vida para trás e avançar, de corpo e alma leves. Rumo ao futuro em branco, de potencial infinito.

Eu e minha esposa estamos nos preparando para viajar esta semana. Ela pediu licença não remunerada e nós vamos partir para um sabático de um ano. Doze meses conhecendo coisas e pessoas diferentes. Quero reaprender a viver, e buscar algo melhor para o nosso futuro. Priorizar o mais importante e descartar o supérfluo.

Estou um pouco cansado pelo agito. Mas muito feliz. Talvez eu não sonhe hoje à noite. Nem realize as mais diversas atividades em improváveis carreiras imaginárias. Porém certamente vou dormir e acordar em uma vida plena. O pessoal continua reunido na varanda e na sala. O apartamento não é grande, mas aconchegante. Vou sentir falta de casa. E dos amigos e da família. A distância vai reforçar o quanto são importantes para mim.

Agora, todos estamos nos divertindo muito. Penso por instantes que o melhor sonho é aqui, quando estamos bem acordados para realizá-lo. E vou buscar mais cerveja.