De repente,uma luz. Um feixe pálido e azulado que vem do canto do quarto. Levanto-me cambaleando e, enquanto minha visão recupera o foco, sento ao computador. Por que o monitor acendeu sozinho? Esta é uma daquelas coisas tecnológicas estranhas que acontecem e nunca descobrimos o porquê. O relógio do computador acusa oito horas e oito minutos.
Rapidamente repasso todos os acessos que tive durante a noite e imprimo duas páginas. Troco de roupa e lavo o rosto, antes de ir à cozinha. Preparo cereal com leite, como de costume. Ninguém percebe a arte de consumir esta fina iguaria. É preciso acertar a proporção ideal dos componentes. Nem muito nem pouco leite. Há quem espere o cereal ficar bem mole para consumir. Eu não. Aguardo o tempo exato para que fique no ponto de crocância perfeita. Uma mania. E bem divertida.
Oito em meia. Uma caneca de café me acompanha ao escritório que, não por acaso, fica no quarto. Reclino-me na cadeira confortável e por instantes reflito sobre a minha sorte. Trabalhar em casa e ser o próprio patrão. Privilégio de poucos. É ótima a sensação de ter feito uma boa escolha, especialmente depois de anos de incerteza.
Algumas pessoas parecem predestinadas. Desde sempre sabem o que querem ser e fazer. Infelizmente não foi o meu caso. A escolha no vestibular foi um impulso, prematuramente concretizado na aprovação. Os anos que se seguiram sedimentaram uma escolha aparentemente acertada. Como posso repensar o futuro me divertindo com meus amigos na faculdade, indo a várias festas e eventualmente arrasando nas provas? Até que começou a vida real. Um trabalho dignificante, mas insatisfatório. O salário era suficiente, mas a sensação de dever cumprido não apareceu. Anos de autoterapia (amadora e empírica) e o resultado foi este. Pendurei o diploma e abri uma empresa de comércio virtual de nicho.
Nove horas. Atualizo o site para certificar que não há outros pedidos. Separo os que foram feitos à noite e que eu imprimi mais cedo. Seis deles são confirmações de pagamento efetuado, que eu já havia separado. Estes eu vou embalar e mandar para os clientes. Outros três são pedidos novos, que eu devo separar e aguardar a confirmação do pagamento.
Dez horas. Separo os itens, dou baixa no estoque, que fica no quarto dos fundos, e atualizo o status dos pedidos no site. Empilho as caixas no bagageiro da minha picape e rumo para o centro. Como é ótimo transitar sem congestionamento, escapar da manada que segue na mesma direção, na mesma hora. O tempo, antes meu inimigo, hoje é meu comparsa.
Onze horas. Pedidos despachados, estaciono em frente ao trabalho da minha esposa. Então ligo para meus fornecedores. Confirmo remessas e pagamentos. Postergo parcelas e negocio preços. Devaneio sobre o clima e o campeonato. Mas meu interlocutor tem patrão e, por isso, tem pressa.
Meio-dia. Um agradável almoço em um self-service próximo. A conversa, outrora sobre o futuro que nunca chega, agora é sobre o presente. O que fazemos da vida hoje é o mais importante. Tão simples e ainda subvalorizado.
Uma e meia. Retorno ao escritório e abro as planilhas. Estudo minuciosamente a demanda de cada um dos produtos. Planejo promoções para os que estão "encalhados" e ajusto o pedido dos que estão quase esgotando. Navego nas redes sociais para sentir o pulso do mercado e tentar antecipar tendências. Prospecto novos fornecedores e produtos em potencial para incrementar o mix. Reviso o orçamento da empresa de design para reformular o site e confeccionar adesivos e pequenos brindes. Trabalhar com um mercado de nicho é maravilhoso. Consigo fazer um atendimento personalizado e maximizar a minha margem. Ainda fujo de competir com os grandes varejistas e mantenho meu público fiel. Tudo online e com custo baixíssimo.
Cinco horas. A empresa vai aumentar em breve. Visito salas comerciais, procurando a melhor opção. Assim que selecionar alguém para a empresa eu devo me mudar. Planejamento é essencial para uma microempresa. Afinal, o escritório no quarto não comporta mais uma pessoa. E eu não quero pagar aluguel enquanto posso trabalhar sozinho em casa.
Sete horas. Eu e minha mulher preparamos o jantar juntos. O "trabalho" mais feliz fazemos de graça, na companhia dos que amamos.
Nove horas. Cozinha em ordem. Uma última checada no site. Separo mais caixas, e novamente trabalho nas planilhas. Tomo uma ducha quente e demorada. De quase dez minutos.
Onze horas. A novela acaba e vamos nos deitar. Um belo dia de trabalho. Satisfação e dever cumprido. Durante a noite, minha loja continua aberta. O tempo trabalha para mim. E o próximo turno é todo dele.