Subitamente, consciente. Acordo do sonho com formigamento visual, e avisto o plafon quadrado no teto. Faixas de luz forte escapam da cortina espessa e contornam a parede à esquerda. A esposa não está no quarto. O forte e delicioso aroma de café me desperta por completo.
Saio para a varanda ainda de pijama, e o café-da-manhã está servido. Minha mulher sorri de camisola e me dá um beijo feliz, seguido por uma torrada amanteigada. Sento no lugar de sempre e apreciamos a vista do nosso décimo-sexto andar. Durante o desjejum conversamos sobre as atividades programadas para hoje. Nenhuma. O que passar pela cabeça pode acontecer em seguida.
Trocamos de roupa e descemos para uma caminhada pelo bairro. Nada como um passeio despretensioso no fim de semana, e uma agradável conversa com a pessoa que mais me importa. Os sonhos? Ainda os tenho. Alguns bons, outros nem tanto. Todos meio surreais, improváveis. Mas ainda assim divertidos.
Uma idéia surge, e eu ligo para alguns amigos. Que tal um churrasco em casa? Ok, e nós compramos a carne! Combinado! A hora que quiserem, hoje eu dei folga para o relógio. É, daqui pra frente serei um excelente patrão para ele. Até mais! Voltamos para casa e vamos de carro ao mercado. No corredor dos caixas, encontro outro amigo. Olá, tudo bem? Que ótimo! Pois é, vai ter churrasco em casa hoje, vamos? Ah, trabalhar? Puxa, que pena... Não, não estou mais lá, eu saí essa semana. Não sei ainda. Mas fique tranquilo, que eu estou muito bem! Até logo, e lembranças à família.
É impressionante o efeito que a situação de desemprego causa nas pessoas. Como se fosse uma doença, quase um falecimento. Todos dizem sentir muito, expressando tristeza. Se sentissem o mesmo que eu, seria felicidade. O ideal é que houvesse palavras diferentes para as situações distintas. Uma delas, o desemprego, com toda a conotação negativa: sem emprego, sem opção e involuntário. E outra, sinemprego, anemprego, inemprego, etc, significando sem emprego, sem desejo por emprego e livremente assumido. O prefixo 'des' atribui passividade, como se a responsabilidade pela situação fosse externa à pessoa. E isso incita pena nos demais. Pode-se argumentar que é só dizer 'desemprego voluntário'. Mas parece, e frequentemente é, eufemismo deslavado para amenizar o fracasso que o cidadão sente.
Já em casa, preparamos as coisas. Os amigos chegam e acendemos o fogo. Bebidas no freezer e a diversão começa. Muitas risadas, histórias do presente e do passado. Várias horas de qualidade voam, o há de melhor para fazer na vida.
Todos demonstram certo receio quando digo que me demiti. Aguardam alguns segundos para se certificarem que eu estou bem com essa decisão. E depois relaxam e curtem o momento comigo. Encarar as coisas com bom humor nos faz sentir melhor. E é para isso que existem os amigos. Claro que não estou feliz porque estou desempregado. A felicidade é pelo começo da nova jornada. Foi preciso sair da inércia para buscar a realização. E isso significou largar o emprego. Deixar a velha vida para trás e avançar, de corpo e alma leves. Rumo ao futuro em branco, de potencial infinito.
Eu e minha esposa estamos nos preparando para viajar esta semana. Ela pediu licença não remunerada e nós vamos partir para um sabático de um ano. Doze meses conhecendo coisas e pessoas diferentes. Quero reaprender a viver, e buscar algo melhor para o nosso futuro. Priorizar o mais importante e descartar o supérfluo.
Estou um pouco cansado pelo agito. Mas muito feliz. Talvez eu não sonhe hoje à noite. Nem realize as mais diversas atividades em improváveis carreiras imaginárias. Porém certamente vou dormir e acordar em uma vida plena. O pessoal continua reunido na varanda e na sala. O apartamento não é grande, mas aconchegante. Vou sentir falta de casa. E dos amigos e da família. A distância vai reforçar o quanto são importantes para mim.
Agora, todos estamos nos divertindo muito. Penso por instantes que o melhor sonho é aqui, quando estamos bem acordados para realizá-lo. E vou buscar mais cerveja.
27 setembro 2010
25 setembro 2010
Capítulo 11
De repente,uma luz. Um feixe pálido e azulado que vem do canto do quarto. Levanto-me cambaleando e, enquanto minha visão recupera o foco, sento ao computador. Por que o monitor acendeu sozinho? Esta é uma daquelas coisas tecnológicas estranhas que acontecem e nunca descobrimos o porquê. O relógio do computador acusa oito horas e oito minutos.
Rapidamente repasso todos os acessos que tive durante a noite e imprimo duas páginas. Troco de roupa e lavo o rosto, antes de ir à cozinha. Preparo cereal com leite, como de costume. Ninguém percebe a arte de consumir esta fina iguaria. É preciso acertar a proporção ideal dos componentes. Nem muito nem pouco leite. Há quem espere o cereal ficar bem mole para consumir. Eu não. Aguardo o tempo exato para que fique no ponto de crocância perfeita. Uma mania. E bem divertida.
Oito em meia. Uma caneca de café me acompanha ao escritório que, não por acaso, fica no quarto. Reclino-me na cadeira confortável e por instantes reflito sobre a minha sorte. Trabalhar em casa e ser o próprio patrão. Privilégio de poucos. É ótima a sensação de ter feito uma boa escolha, especialmente depois de anos de incerteza.
Algumas pessoas parecem predestinadas. Desde sempre sabem o que querem ser e fazer. Infelizmente não foi o meu caso. A escolha no vestibular foi um impulso, prematuramente concretizado na aprovação. Os anos que se seguiram sedimentaram uma escolha aparentemente acertada. Como posso repensar o futuro me divertindo com meus amigos na faculdade, indo a várias festas e eventualmente arrasando nas provas? Até que começou a vida real. Um trabalho dignificante, mas insatisfatório. O salário era suficiente, mas a sensação de dever cumprido não apareceu. Anos de autoterapia (amadora e empírica) e o resultado foi este. Pendurei o diploma e abri uma empresa de comércio virtual de nicho.
Nove horas. Atualizo o site para certificar que não há outros pedidos. Separo os que foram feitos à noite e que eu imprimi mais cedo. Seis deles são confirmações de pagamento efetuado, que eu já havia separado. Estes eu vou embalar e mandar para os clientes. Outros três são pedidos novos, que eu devo separar e aguardar a confirmação do pagamento.
Dez horas. Separo os itens, dou baixa no estoque, que fica no quarto dos fundos, e atualizo o status dos pedidos no site. Empilho as caixas no bagageiro da minha picape e rumo para o centro. Como é ótimo transitar sem congestionamento, escapar da manada que segue na mesma direção, na mesma hora. O tempo, antes meu inimigo, hoje é meu comparsa.
Onze horas. Pedidos despachados, estaciono em frente ao trabalho da minha esposa. Então ligo para meus fornecedores. Confirmo remessas e pagamentos. Postergo parcelas e negocio preços. Devaneio sobre o clima e o campeonato. Mas meu interlocutor tem patrão e, por isso, tem pressa.
Meio-dia. Um agradável almoço em um self-service próximo. A conversa, outrora sobre o futuro que nunca chega, agora é sobre o presente. O que fazemos da vida hoje é o mais importante. Tão simples e ainda subvalorizado.
Uma e meia. Retorno ao escritório e abro as planilhas. Estudo minuciosamente a demanda de cada um dos produtos. Planejo promoções para os que estão "encalhados" e ajusto o pedido dos que estão quase esgotando. Navego nas redes sociais para sentir o pulso do mercado e tentar antecipar tendências. Prospecto novos fornecedores e produtos em potencial para incrementar o mix. Reviso o orçamento da empresa de design para reformular o site e confeccionar adesivos e pequenos brindes. Trabalhar com um mercado de nicho é maravilhoso. Consigo fazer um atendimento personalizado e maximizar a minha margem. Ainda fujo de competir com os grandes varejistas e mantenho meu público fiel. Tudo online e com custo baixíssimo.
Cinco horas. A empresa vai aumentar em breve. Visito salas comerciais, procurando a melhor opção. Assim que selecionar alguém para a empresa eu devo me mudar. Planejamento é essencial para uma microempresa. Afinal, o escritório no quarto não comporta mais uma pessoa. E eu não quero pagar aluguel enquanto posso trabalhar sozinho em casa.
Sete horas. Eu e minha mulher preparamos o jantar juntos. O "trabalho" mais feliz fazemos de graça, na companhia dos que amamos.
Nove horas. Cozinha em ordem. Uma última checada no site. Separo mais caixas, e novamente trabalho nas planilhas. Tomo uma ducha quente e demorada. De quase dez minutos.
Onze horas. A novela acaba e vamos nos deitar. Um belo dia de trabalho. Satisfação e dever cumprido. Durante a noite, minha loja continua aberta. O tempo trabalha para mim. E o próximo turno é todo dele.
Rapidamente repasso todos os acessos que tive durante a noite e imprimo duas páginas. Troco de roupa e lavo o rosto, antes de ir à cozinha. Preparo cereal com leite, como de costume. Ninguém percebe a arte de consumir esta fina iguaria. É preciso acertar a proporção ideal dos componentes. Nem muito nem pouco leite. Há quem espere o cereal ficar bem mole para consumir. Eu não. Aguardo o tempo exato para que fique no ponto de crocância perfeita. Uma mania. E bem divertida.
Oito em meia. Uma caneca de café me acompanha ao escritório que, não por acaso, fica no quarto. Reclino-me na cadeira confortável e por instantes reflito sobre a minha sorte. Trabalhar em casa e ser o próprio patrão. Privilégio de poucos. É ótima a sensação de ter feito uma boa escolha, especialmente depois de anos de incerteza.
Algumas pessoas parecem predestinadas. Desde sempre sabem o que querem ser e fazer. Infelizmente não foi o meu caso. A escolha no vestibular foi um impulso, prematuramente concretizado na aprovação. Os anos que se seguiram sedimentaram uma escolha aparentemente acertada. Como posso repensar o futuro me divertindo com meus amigos na faculdade, indo a várias festas e eventualmente arrasando nas provas? Até que começou a vida real. Um trabalho dignificante, mas insatisfatório. O salário era suficiente, mas a sensação de dever cumprido não apareceu. Anos de autoterapia (amadora e empírica) e o resultado foi este. Pendurei o diploma e abri uma empresa de comércio virtual de nicho.
Nove horas. Atualizo o site para certificar que não há outros pedidos. Separo os que foram feitos à noite e que eu imprimi mais cedo. Seis deles são confirmações de pagamento efetuado, que eu já havia separado. Estes eu vou embalar e mandar para os clientes. Outros três são pedidos novos, que eu devo separar e aguardar a confirmação do pagamento.
Dez horas. Separo os itens, dou baixa no estoque, que fica no quarto dos fundos, e atualizo o status dos pedidos no site. Empilho as caixas no bagageiro da minha picape e rumo para o centro. Como é ótimo transitar sem congestionamento, escapar da manada que segue na mesma direção, na mesma hora. O tempo, antes meu inimigo, hoje é meu comparsa.
Onze horas. Pedidos despachados, estaciono em frente ao trabalho da minha esposa. Então ligo para meus fornecedores. Confirmo remessas e pagamentos. Postergo parcelas e negocio preços. Devaneio sobre o clima e o campeonato. Mas meu interlocutor tem patrão e, por isso, tem pressa.
Meio-dia. Um agradável almoço em um self-service próximo. A conversa, outrora sobre o futuro que nunca chega, agora é sobre o presente. O que fazemos da vida hoje é o mais importante. Tão simples e ainda subvalorizado.
Uma e meia. Retorno ao escritório e abro as planilhas. Estudo minuciosamente a demanda de cada um dos produtos. Planejo promoções para os que estão "encalhados" e ajusto o pedido dos que estão quase esgotando. Navego nas redes sociais para sentir o pulso do mercado e tentar antecipar tendências. Prospecto novos fornecedores e produtos em potencial para incrementar o mix. Reviso o orçamento da empresa de design para reformular o site e confeccionar adesivos e pequenos brindes. Trabalhar com um mercado de nicho é maravilhoso. Consigo fazer um atendimento personalizado e maximizar a minha margem. Ainda fujo de competir com os grandes varejistas e mantenho meu público fiel. Tudo online e com custo baixíssimo.
Cinco horas. A empresa vai aumentar em breve. Visito salas comerciais, procurando a melhor opção. Assim que selecionar alguém para a empresa eu devo me mudar. Planejamento é essencial para uma microempresa. Afinal, o escritório no quarto não comporta mais uma pessoa. E eu não quero pagar aluguel enquanto posso trabalhar sozinho em casa.
Sete horas. Eu e minha mulher preparamos o jantar juntos. O "trabalho" mais feliz fazemos de graça, na companhia dos que amamos.
Nove horas. Cozinha em ordem. Uma última checada no site. Separo mais caixas, e novamente trabalho nas planilhas. Tomo uma ducha quente e demorada. De quase dez minutos.
Onze horas. A novela acaba e vamos nos deitar. Um belo dia de trabalho. Satisfação e dever cumprido. Durante a noite, minha loja continua aberta. O tempo trabalha para mim. E o próximo turno é todo dele.
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