O calor me desperta. São onze horas. O quarto está escuro por mérito das novas cortinas blecaute. A mente não quer mais dormir. Os sonhos continuam hiperativos. Estou pronto para mais um dia. Um novo capítulo na novela da vida real.
As minhas manhãs sempre foram preguiçosas. Sou um ser noturno. Agora com meu novo trabalho posso ajustar meu dia à minha vontade. Mais que antes, pelo menos. É bom sentir que aproveito meu melhor momento para a labuta. Não fico forçando meu organismo ao famigerado horário comercial. A sociedade microeconômica move-se em bloco. Tudo tem que funcionar ao mesmo tempo. Artificialmente.
Revejo rapidamente a agenda. Faço uma ligação para confirmar o compromisso vespertino. Meu trabalho hoje é bastante satisfatório. Nada de competição. Ninguém buscando a vantagem. O lucro não é mais a medida das coisas. Entrego meu esforço em troca de muita satisfação. E pouco dinheiro. Não se pode ganhar em tudo. Pelo menos num primeiro momento. Reparo na anotação da viagem a Paris, riscada dessa data por contenção de despesas. Ao contrário da crença popular, mudanças para melhor são pontuadas de desvantagens. E por isso, nada fáceis. Mas Paris pode esperar.
Uma hora. Almoço algo semipronto. Salve o inventor do micro-ondas. Meu par conjugal não retorna para o almoço. Ela trabalha muito longe. Num emprego regular, em horário comercial. Não que seja uma desvantagem. Cada pessoa deve buscar o que melhor se encaixe na sua vontade. E eu estou quebrando os paradigmas e violando as regras. Sou um algoz das convenções sociais.
Duas horas. Chego à sede da emissora. Costumo ser simpático com todos, desde o porteiro, seguranças, assistentes-de-tudo, até o pessoal da limpeza. Todos aqui, sem exceção têm potencial. Podem no futuro chegar ao sucesso. Ou simplesmente aposentar-se na mesma função. Nunca antes pensei que as estrelas de tevê pudessem entrar aqui, por uma porta giratória comum. Acenar para as pessoas comuns com empregos comuns antes de estrelar programas de sucesso. O convívio com as celebridades certamente entra no pacote de benefícios oferecidos nessa empresa. E todos trabalham felizes.
Duas e dez. Antes de perder o sinal nas salas isoladas, ligo para minha esposa. Gosto de saber como ela está. Entre outras coisas, combinamos de ir ao mercado amanhã. Ela então se queixa do orçamento, que anda curto. Abrimos mão de alguns itens menos essenciais para cabermos em nosso novo salário. Concordamos afinal, Paris deve esperar.
Vou até o balcão, anunciar minha chegada nos estúdios. Assino a entrada e dirijo-me às estantes de arquivos. As secretárias me conhecem. Há meses que frequento o local diariamente. Assisto a alguns programas e mergulho a fundo na papelada que os acompanham. São basicamente pesquisas e relatórios dos quais extraio informações para minha tese. A audiência de cada capítulo, a propaganda nos intervalos e as inserções comerciais. Nas novelas, delineio cada linha que a trama desenha capítulo por capítulo. E como cada um dos núcleos de personagens interage. Tudo entra devidamente classificado dentro do meu netbook.
Há alguns anos decidi sair do meu emprego monótono e encontrar algo que me realizasse. Sempre gostei muito de assistir à televisão. Por isso busquei uma carreira que pudesse associar meu prazer ao desenvolvimento de algo útil e interessante. Certamente não tenho desinibição para estar do lado de lá da tela. Até que, certo dia, conversando com amigos numa mesa de baralho, o assunto surgiu.
O impacto que esse aparelho tem na vida das pessoas é enorme. Por meio da tevê, recebemos em casa cultura empacotada. E a sociedade acaba se moldando por ela. O fenômeno é muito mais gritante nas novelas. As gírias, as roupas, os conflitos pessoais e familiares, os hábitos, as intrigas e até as doenças dos personagens são assunto de rodas de conversa por todo o país. Isso foi percebido pelas empresas, de modo que, não por mera coincidência, um personagem dirige o carro X, usa o creme Y e toma o refrigerante Z. O posicionamento no mercado dos produtos pode ser feito associando sua imagem à personalidade e às qualidades de tal personagem. Todos querem copiar algo da vida maravilhosa da tevê. Nem que seja o xampu que o galã usa.
O diploma de Sociologia como segunda faculdade foi consequência do desejo. Desejo de ir a fundo nessa relação da tevê com as pessoas. Como ela entra nos lares e influencia a vida de todos, direta ou indiretamente. Qual é a nossa reação a este fato e como será o futuro, com a internet e a era digital amplificando toda a interação.
Seis horas. Estou de saída. Penso que sempre é possível trabalhar com o que se gosta. Há anos que possuo essa convicção. Mas admitir a infelicidade e aplicar a dificílima solução levou tempo. Sei de colegas que reclamam insatisfeitos com suas carreiras. Porém, não assumem o risco de mudar. Entre a incerteza da felicidade e a certeza da infelicidade, talvez escolham a última. As pessoas pensam na mudança de trabalho como uma decisão de vida ou morte. É errado. A morte não é uma opção, é um fato futuro garantido. As opções se dão em vida. Para aqueles que têm coragem.
Oito horas. Após o jantar a dois, vamos à sessão diária de tevê. Sempre anotando tudo, acumulo informações no netbook. Minha esposa fica feliz em me ver trabalhando satisfeito. O lazer e o dever se tornam indistintos, e eu frequentemente fico até tarde da noite trabalhando. Ou curtindo, como seja.
A certa altura da madrugada desligo o aparelho e vou me deitar. Um copo de água me acompanha até a beira do leito. A esposa descansa silenciosa. E eu me deito para entrar no sonho. Paris, aí vou eu.
15 março 2010
10 março 2010
Capítulo 7
A consciência se acende. Como turbinas de uma nave espacial, rugindo e tremendo sem sair do lugar. Vagarosamente sinto o corpo, levanto e constato as horas. Onze. Aos poucos me acostumo a acordar esse horário, e a fazer do almoço o desjejum. Já vestido, adentro a cozinha para iniciar um grande dia.
Lavo uma faca e um copo, vestígios do café-da-manhã da esposa. Logo ela vai chegar para o almoço. Automaticamente, pico cebolas e alhos. Lágrimas frias ardem os olhos. O cheiro prazeroso vai se formando nas panelas enquanto faço a terapia culinária diária. Cozinhar em casa havia sido uma necessidade. Depois da grande mudança precisávamos encaixar o padrão de vida na atual faixa de renda. Já faz alguns meses, e por isso já tenho certa desenvoltura de avental.
Meio-dia e dez. Almoçamos juntos enquanto conversamos com animação. Se estou ansioso? Claro. Hoje é o primeiro dia de uma nova era. Meses de estudo e dedicação, trocas de experiências e noites em claro. Pra culminar no hoje em diante. Contemplo minha obra-prima de cinquenta centímetros cúbicos. Daqui a pouco vou à escola para a primeira aula.
Uma e meia. Estou chegando para o primeiro dia do novo emprego. Cumprimento efusivamente um velho professor. Amigos nos ajudam a encontrar o caminho. Este me abriu as portas da oportunidade. Meses atrás me apresentou ao diretor da escola. Disse que eu poderia substituí-lo em algumas aulas de laboratório. O diretor ficou tão satisfeito com meu domínio da astronomia que criou aulas extracurriculares sobre o tema para todo o ensino fundamental.
Há quase dois anos que me dedico aos estudos de astronomia. Iniciei em paralelo ao antigo emprego. O que era uma diversão curiosa tornou-se alvo de estudo sério. Assisti a diversos cursos em todo o país e frequentei congressos e workshops. E quando tive certeza, abandonei a segurança. Para abraçar a paixão. Só não fiz o curso superior ou pós-graduação. Não tenho maiores pretensões por enquanto. Filiei-me a um clube de observadores. Sou um amador profissional. Nesse período aprendi a cozinhar e cuidar da casa. Gastei cada centavo economizado nos últimos cinco anos. Adiamos a compra do segundo carro e a mudança para uma casa melhor. Em prol da minha realização. Que culmina hoje com o primeiro sucesso.
Duas horas. Os alunos vão chegando. Alguns curiosos. Mas a maioria receosa e tímida. Olham para mim enquanto acomodo minha maquete sobre a mesa. Era uma base de madeira fina pintada de preto, com hastes metálicas que sustentavam esferas pintadas cuidadosamente à mão. Uma representação da Via Láctea. Oito meses de trabalho concentrados em cinquenta centímetros cúbicos. É chegada a hora de começar.
Crianças são incríveis. Tem um poder de absorção de conhecimento quase infinito. São atraídas pelo interesse genuíno. Perguntam e duvidam tão sinceramente quanto respondem e acreditam. E por isso a aula transcorre muito bem. Nervosismo à parte, despertar curiosidade nas crianças é fácil tendo o espaço sideral como assunto. Começo pelo sistema solar com a maquete para prender sua atenção. E termino falando do que eles mais gostam. Viagens espaciais do passado.
Deixar o emprego foi difícil. Não é simples abandonar o piso seguro e dar um salto no desconhecido. Um frio na barriga é o que se sente, por semanas, ou meses. E retornar à rotina pregressa seria como admitir para si o fracasso. Arrasador. Até hoje tenho arrepios de pensar no risco que assumi. O segredo é não olhar pra baixo, nem pra trás. Pelo menos até sentir a terra firme de novo. E a felicidade.
Seis horas. Inicio o preparo do jantar. Apenas um complemento para as sobras do almoço. Minha esposa chega animada para saber como fui. Diz que sabia que iria dar tudo certo. O apoio nessas horas de mudança tem que vir de dentro. Da minha cabeça. E da minha família. Apesar do ceticismo de todo o resto da família e quase todos os amigos, iria dar tudo certo. Eu e ela faríamos acontecer. E estava começando agora.
Oito e meia. Saio de carro para o clube. É uma chácara fora da cidade. Hoje o seminário é sobre Plutão. O presidente vai discorrer sobre dados e imagens para os outros cinco membros. Vamos discutir à exaustão tudo o que foi documentado e é conhecimento aberto até o momento. Inclusive a recente mudança de classificação do antigo planeta e os argumentos científicos. Por último vamos votar minha última idéia.
Sugeri fomentar o interesse de adultos pelo assunto por meio de cursos. Estava tudo idealizado em minha cabeça. Os módulos e o planejamento da observação noturna após as aulas, conforme a época do ano. Cada membro daria um ou mais módulos, segundo a vontade e o conhecimento. Parte do faturamento iria para o clube. E parte para o sustento dos nossos lares. A idéia é aprovada. Se vai dar certo? Não sei. Mas vou trabalhar feliz no projeto.
Onze horas. É chegado o momento solene da observação. Apagamos as luzes e cada um pega seu telescópio. Minutos ou horas de puro deleite. E silêncio cerimonioso.
Uma hora. Retorno ao lar após o segundo período da minha nova atividade. A noite sempre foi minha companheira, de insônia ou de trabalho imposto. Mas agora o prazer permeia meus esforços. E eu estou em um caminho de plenitude. O dinheiro faz uma grande falta. Mas é um preço ínfimo pela liberdade. Segurança? Abandonei-a voluntariamente.
A esposa dorme tranquila enquanto eu me deito. O cansaço bate e o sono vem fácil. Um sono de vitória.
Lavo uma faca e um copo, vestígios do café-da-manhã da esposa. Logo ela vai chegar para o almoço. Automaticamente, pico cebolas e alhos. Lágrimas frias ardem os olhos. O cheiro prazeroso vai se formando nas panelas enquanto faço a terapia culinária diária. Cozinhar em casa havia sido uma necessidade. Depois da grande mudança precisávamos encaixar o padrão de vida na atual faixa de renda. Já faz alguns meses, e por isso já tenho certa desenvoltura de avental.
Meio-dia e dez. Almoçamos juntos enquanto conversamos com animação. Se estou ansioso? Claro. Hoje é o primeiro dia de uma nova era. Meses de estudo e dedicação, trocas de experiências e noites em claro. Pra culminar no hoje em diante. Contemplo minha obra-prima de cinquenta centímetros cúbicos. Daqui a pouco vou à escola para a primeira aula.
Uma e meia. Estou chegando para o primeiro dia do novo emprego. Cumprimento efusivamente um velho professor. Amigos nos ajudam a encontrar o caminho. Este me abriu as portas da oportunidade. Meses atrás me apresentou ao diretor da escola. Disse que eu poderia substituí-lo em algumas aulas de laboratório. O diretor ficou tão satisfeito com meu domínio da astronomia que criou aulas extracurriculares sobre o tema para todo o ensino fundamental.
Há quase dois anos que me dedico aos estudos de astronomia. Iniciei em paralelo ao antigo emprego. O que era uma diversão curiosa tornou-se alvo de estudo sério. Assisti a diversos cursos em todo o país e frequentei congressos e workshops. E quando tive certeza, abandonei a segurança. Para abraçar a paixão. Só não fiz o curso superior ou pós-graduação. Não tenho maiores pretensões por enquanto. Filiei-me a um clube de observadores. Sou um amador profissional. Nesse período aprendi a cozinhar e cuidar da casa. Gastei cada centavo economizado nos últimos cinco anos. Adiamos a compra do segundo carro e a mudança para uma casa melhor. Em prol da minha realização. Que culmina hoje com o primeiro sucesso.
Duas horas. Os alunos vão chegando. Alguns curiosos. Mas a maioria receosa e tímida. Olham para mim enquanto acomodo minha maquete sobre a mesa. Era uma base de madeira fina pintada de preto, com hastes metálicas que sustentavam esferas pintadas cuidadosamente à mão. Uma representação da Via Láctea. Oito meses de trabalho concentrados em cinquenta centímetros cúbicos. É chegada a hora de começar.
Crianças são incríveis. Tem um poder de absorção de conhecimento quase infinito. São atraídas pelo interesse genuíno. Perguntam e duvidam tão sinceramente quanto respondem e acreditam. E por isso a aula transcorre muito bem. Nervosismo à parte, despertar curiosidade nas crianças é fácil tendo o espaço sideral como assunto. Começo pelo sistema solar com a maquete para prender sua atenção. E termino falando do que eles mais gostam. Viagens espaciais do passado.
Deixar o emprego foi difícil. Não é simples abandonar o piso seguro e dar um salto no desconhecido. Um frio na barriga é o que se sente, por semanas, ou meses. E retornar à rotina pregressa seria como admitir para si o fracasso. Arrasador. Até hoje tenho arrepios de pensar no risco que assumi. O segredo é não olhar pra baixo, nem pra trás. Pelo menos até sentir a terra firme de novo. E a felicidade.
Seis horas. Inicio o preparo do jantar. Apenas um complemento para as sobras do almoço. Minha esposa chega animada para saber como fui. Diz que sabia que iria dar tudo certo. O apoio nessas horas de mudança tem que vir de dentro. Da minha cabeça. E da minha família. Apesar do ceticismo de todo o resto da família e quase todos os amigos, iria dar tudo certo. Eu e ela faríamos acontecer. E estava começando agora.
Oito e meia. Saio de carro para o clube. É uma chácara fora da cidade. Hoje o seminário é sobre Plutão. O presidente vai discorrer sobre dados e imagens para os outros cinco membros. Vamos discutir à exaustão tudo o que foi documentado e é conhecimento aberto até o momento. Inclusive a recente mudança de classificação do antigo planeta e os argumentos científicos. Por último vamos votar minha última idéia.
Sugeri fomentar o interesse de adultos pelo assunto por meio de cursos. Estava tudo idealizado em minha cabeça. Os módulos e o planejamento da observação noturna após as aulas, conforme a época do ano. Cada membro daria um ou mais módulos, segundo a vontade e o conhecimento. Parte do faturamento iria para o clube. E parte para o sustento dos nossos lares. A idéia é aprovada. Se vai dar certo? Não sei. Mas vou trabalhar feliz no projeto.
Onze horas. É chegado o momento solene da observação. Apagamos as luzes e cada um pega seu telescópio. Minutos ou horas de puro deleite. E silêncio cerimonioso.
Uma hora. Retorno ao lar após o segundo período da minha nova atividade. A noite sempre foi minha companheira, de insônia ou de trabalho imposto. Mas agora o prazer permeia meus esforços. E eu estou em um caminho de plenitude. O dinheiro faz uma grande falta. Mas é um preço ínfimo pela liberdade. Segurança? Abandonei-a voluntariamente.
A esposa dorme tranquila enquanto eu me deito. O cansaço bate e o sono vem fácil. Um sono de vitória.
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