12 agosto 2010

Capítulo 10

Desligo o celular imediatamente após o primeiro toque. Cinco e cinquenta. É muito cedo e não quero acordar a esposa. Pássaros piam timidamente e o zumbido das lâmpadas fluorescentes da iluminação pública lá fora é audível. Resisto a voltar ao sono, que ainda não passou por completo. Pisco os olhos na escuridão e levanto-me em silêncio, desviando dos calçados à beira da cama. Chego tateando ao guarda-roupas.

Troco de roupa lentamente, e não esqueço o casaco. Ir à feira cedinho é bom pra resfriado. Pra pegar, claro. Saio de carro ainda no escuro, mas quase amanhecendo. Dirigir nas ruas vazias é uma tranquilidade. A essa hora chego a tempo de estacionar bem pertinho e ainda vejo várias barracas sendo armadas.

Seis e vinte. O sol já aparece quando inicio as compras. A terapia de escolher, cheirar, sentir e apalpar verduras, legumes e frutas me faz muito bem. Nada parecido com a minha rotina anterior, de apertos de mão formais, polidez desnecessária e pressão incessante. Cozinhar sempre foi um prazer quando havia tempo. Mas na corrida diária era um estorvo e os self-services eram a regra. Aos poucos a idéia do negócio foi surgindo, por insistência de amigos. E com a indicação destes é que os primeiros clientes apareceram. E eu pude me libertar da prisão empregatícia.

Sete e cinquenta. Já terminei por aqui e, tendo visitado todos os fiéis fornecedores feirantes, dirijo-me ao açougue. Alguns cortes de carne e frango depois chego em casa. Acondiciono os ingredientes devidamente e vou acordar a esposa. Tomamos café juntos e conversamos amenidades. Ela sai para o escritório e eu leio rapidamente o jornal.

Dez horas. Após um banho rápido, preparo-me para o trabalho domiciliar. Arrumo as mesas na varanda e separo a louça que vai ser usada. Confiro a lista de convidados mais uma vez e preparo os ingredientes. Limpar, lavar, cortar, picar, ralar e separar. Tudo muito bonito e higiênico. Deixo as entradas e sobremesas semifinalizados e reservo-as na geladeira. Preparo os sucos, pois eles chegarão a qualquer momento.

Trabalhar em casa sempre foi um desejo meu. Mas inocentemente eu imaginava algo estático, em frente ao computador e telefone. Afinal, é isso que significa trabalhar em casa, não é mesmo? Talvez não. Durante as reuniões familiares e de amigos, sempre recebi muitos elogios à hospitalidade e à comida, especialmente. Todos diziam, brincando, que esperavam ansiosos que eu largasse meu emprego e abrisse um restaurante. Assim eu poderia explorar todo meu potencial culinário ao invés de perder tempo ganhando dinheiro para outros em um ofício repetitivo. Mas a realidade é dura. Montar um restaurante demanda muito capital. E industrializa a cozinha, transformando a arte de cozinhar em uma fria linha de montagem. Então surgiu a idéia de um bistrô diferente, unindo as vantagens. Trabalhar em casa, economizar com o restaurante e cozinhar com prazer.

O telefone toca. Bom dia! Sinto muito, mas hoje a casa está lotada. Nosso serviço é totalmente artesanal e personalizado, e por isso atendemos a somente doze pessoas por vez, em minha casa. Como funciona? É muito simples. Fazemos a reserva antecipadamente. Atendemos somente no almoço. A cada dia temos duas opções de entrada, prato principal, suco e sobremesa, com serviço à inglesa. Sim, muito descontraído e à vontade, sem formalidades. O cardápio pode ser conferido pela internet em nosso site, com antecedência semanal. Só um segundo que vou verificar. Posso marcar para depois de amanhã? Certo, de entradas bruschettas ou provolone à milanesa. Como prato principal, tagliarine ao pesto com filé mignon grelhado, ou frango ao curry com risoto de champignon. Sobremesas, creme de morango e uva ou torta de kiwi com baunilha. Sucos de framboesa ou abacaxi. Quatro pessoas, confirmado. Alguma alergia ou solicitação especial? Certamente.

Meio-dia. Os convidados começam a chegar e são recepcionados por mim. Três casais e uma família compõem a freguesia. Quando todos estão bem instalados eu recito o cardápio e recolho as escolhas de cada um. Sou o único garçom. Limonada suíça, suco de melancia ou água? Pasta de berinjela com pimenta biquinho e pão sírio ou quiche de aspargos? Rondelli de peito de peru e tomate seco com arroz carreteiro, ou frango à milanesa com creme de milho e arroz com legumes? Segue o preparo dos alimentos eventualmente interrompido com conversas e comentários sobre diversos assuntos, principalmente culinária e os prazeres da vida. Minha esposa se junta a nós e almoçamos juntos. Parece uma grande reunião de família e os estranhos vêm a se conhecer no final das contas.

Duas horas. Após o almoço os convidados se esticam em poltronas, esteiras e redes sob as árvores que privilegiam meu jardim e desfrutam da paz e dos sons naturais. Enquanto isso eu estou agilizando as sobremesas, a saber: torta de nozes com chocolate e salada de frutas tropicais com chantily. Delícias!

Quatro horas. Todos se despedem com alegria e trocam contatos. Prometem marcar mais um almoço no futuro. Comigo, é claro. Elogios vêm aos borbotões e eu os recebo de bom grado. Fazer o que me dá prazer e ainda ser pago e elogiado por isso. Uma receita infalível para um dia de trabalho perfeito. Trazer a felicidade e bonança para as pessoas é o que mais me agrada. E a certeza de que estou no caminho certo.

Seis e meia. Minha esposa chega e eu ainda estou arrumando a cozinha e finalizando as louças. Um dia realmente cheio e cansativo. Ainda bem que trabalho em dias alternados, senão o corpo não suportaria. A renda está aquém do que eu gostaria, e ainda abaixo do meu salário anterior. Mas a satisfação compensa a diferença.

O período de transição está passando, e agora o restaurante está chegando ao nível de ocupação que eu planejava há um ano, quando comecei. O trabalho é bastante intenso, mas a recompensa é imediata. E a sensação de trabalhar por mim, para o meu futuro e para a alegria de todos não tem preço.

Nove horas. Estou cabeceando de sono em frente à tevê quando minha esposa me chama para ir dormir na cama. Sonambulando semiconsciente eu a sigo e apago imediatamente ao deitar. Nem sinto que ela me cobre e me beija nos lábios. Eu durmo sorrindo.