As luzes brilham coloridas. A brisa quente da noite não tem cheiro, mas traz uma satisfação plena, uma ansiedade que esvazia e congela o estômago. Muitas lutas foram vencidas e perdidas até chegar a este momento. A glória, a fama e o reconhecimento. Las Vegas, finalmente. Abro os olhos com esta imagem fixa no teto branco. São dez horas.
Rapidamente troco de roupa e desço até o lobby do hotel. Uma acomodação mediana, mas que surpreende qualquer recém-chegado. A decoração suntuosa com estilo clássico e exageradamente ostensivo impressiona. É só um dos extremos que podemos ver na cidade do pecado. Aliás, o pecado que faz a fama da capital mundial do jogo não passa de balela. Um exagero dos falsos puritanos que os cassinos obviamente não têm interesse em desfazer. Esquecem de mencionar que o pecado está na cabeça das pessoas, geralmente as que o cometem.
Onze horas. Um brunch demorado vai substituir o almoço hoje. A tensão vai aumentando com o correr dos minutos. Lentamente saio do hotel e sigo a pé pela Strip, a avenida principal dos cassinos. Com satisfação penso no passado, no caminho percorrido até o presente. Cada metro me leva mais perto da realização de um sonho. A série mundial de poker ou, para os íntimos, the World Series of Poker.
O poker surgiu por acaso, em um jogo semanal na casa de amigos. No início, apenas um despretensioso happy hour. Cada um chegava com sua cerveja e petiscos, e ríamos e papeávamos ao redor das cartas. Aos poucos fui conhecendo o jogo, assistindo a partidas pela internet e pela tevê. Quando soube que os aficcionados realmente desenvolveram uma ciência para o poker, com estatísticas, estratégias e material de estudo, achei graça. Poucos meses depois comprei o primeiro livro sobre o assunto.
Meu trabalho não ia bem há anos. A insatisfação crônica e a culpa por desprezar uma carreira supostamente invejável pioravam a situação. Cansei de ser censurado por reclamar de minha situação. Sentia-me um mal-agradecido, queixando-me de um trabalho tão bom, social e financeiramente. Parei de expressar a frustração e comecei a acumular inspiração. Sabia que a mudança chegaria a qualquer momento. E estava preparado para enfrentar a resistência.
Enquanto cogitava o que fazer, para onde virar o leme da minha carreira, o poker cresceu. Fiz cadastro em um site de poker online, onde passei a jogar com dinheiro fictício. Depois de alguns meses o site depositou cinco dólares em minha conta, e eu comecei a jogar a dinheiro. Madrugadas a fio eu passei no feltro virtual. Ganhei mais dinheiro e depois perdi. Emprestei a amigos que também estavam empolgados com a novidade. Fui à falência dos cinco dólares e depois renasci de um dólar de empréstimo devolvido. Nesse bate-e-rebate meu jogo se desenvolveu. E eu comecei a ser mais ganhador que perdedor.
Duas horas. Passeio por um grande e moderno shopping, e compro alguns presentes para a esposa, amigos e familiares. Continuo a repassar todos os passos que me trouxeram até aqui. Há seis meses juntei um capital virtual considerável. Retirei uma parte para comprar um conjunto de colar e brincos numa joalheria de grife. Na noite em que dei o presente para minha esposa, fiz o grande anúncio. Largaria o emprego para me dedicar ao poker. Assumi para o mundo o que havia assumido para mim mesmo há meses. Não há razão em uma carreira vazia. E sem realização no trabalho, não existe felicidade completa.
Tenho uma reserva para emergências. Mas nos últimos meses passei no teste definitivo. Fiz retiradas constantes para pagar as contas, sem comprometer meu bankroll, que é como se chama o capital investido para jogar. E mantive intocada a reserva. Financeiramente, é como se eu tivesse um capital investido em ações, e mensalmente retirasse o lucro líquido para pagar as contas. A diferença básica é que, ao invés de predizer o movimento do mercado, eu devo manter meu jogo vencedor em relação aos adversários, antecipando suas jogadas e tomando decisões acertadas no longo prazo.
Há muito de lógica e matemática no poker, o que contribui para uma relativa previsibilidade nas jogadas. E isso faz com que um jogador que estude e se dedique possa ter resultados positivos com certa constância. Para quem está de fora, parece que eu me sento na frente do computador e “brinco” de jogar cartas por horas a fio. Mal sabem que tenho calculado meu retorno sobre investimento médio nos últimos mil torneios. Sei por exemplo que ganho cerca de vinte por cento do capital investido por hora. E a cada dado instante nunca estou arriscando mais que cinco por cento do capital total. Para um profissional, seja corretor de ações, empresário ou jogador de poker, nada como correr riscos calculados.
Dentro de uma partida, ainda mais racionalidade existe. Com base no padrão de apostas no decorrer da partida e conhecendo o oponente, pode-se saber com alguma margem de erro quais cartas ele tem, e se suas cartas vencem o jogo ou não. Ou ainda, se é possível fazê-lo fugir com um blefe. A maneira de extrair informação por meio de observação, conversa, ou valor das apostas é o que diferencia um jogador excelente de um ruim. O melhor jogador vence a maior parte das vezes, mas não todas. E por isso o poker é um jogo de longo prazo. Em uma única rodada, um pato pode ganhar de um profissional, por sorte. Mas em dez mil rodadas, o profissional certamente vai ganhar mais da metade das vezes. Bem mais.
Meus amigos me confrontaram no início. Mesmo os do poker. Sabem que é algo arriscado, não reconhecido socialmente e bastante estigmatizado. Sei que só querem que eu não me frustre. Mas no decorrer do tempo acabarão por perceber que tornar-se profissional do poker é um caminho possível. O preconceito das pessoas parece uma torcida contra, mas não passa de excesso de zelo.
Para a família já desisti de tentar. Minha felicidade não basta, como se eu fosse um adolescente que quer convencer a todos que a nova moda, dessa vez, veio para ficar. Com a essencial diferença que estou pagando as contas da minha casa, inclusive parcelas de financiamento e viagens com capital da nova moda.
E os torneios lendários, a riqueza súbita, o conto de fadas do empregado que ganhou um torneio e ficou milionário? Isso pode ocorrer. Mas não é a regra. Todos tentam, poucos conseguem. Como no basquete, noventa e nove por cento do tempo, devemos ser conservadores. Fazer pontos com infiltrações, enterradas, lances livres ou arremessos de perto. Com pouca freqüência tentamos tiros de longe, quando o tempo vai acabar. Mais raramente ainda, acerta-se uma cesta de três pontos do meio da quadra e garante-se a fama e fortuna. O que me traz de volta a Vegas.
Quatro horas. Chego ao saguão do hotel onde está ocorrendo a série. Faço minha inscrição. Dou uma volta pelo salão onde outro torneio está ocorrendo. Sinto o cheiro do carpete e estremeço de emoção.
Volto para a rua e vou conhecer a cidade. Meu torneio começa amanhã. E mal posso esperar. Vou caminhar a cidade toda para chegar à noite bem cansado e conseguir dormir. Provavelmente vai ser uma longa noite. De insônia. E realização.